Livro: Idade
Média: Nascimento do Ocidente. Hilário franco Jr.
Prefácio
Quando lançamos a primeira edição
deste livro, em 1986, foi como resposta ao interesse que começava a haver no
Brasil pela história da Idade Média, ainda que com muitas décadas de atraso em
relação à Europa e algumas décadas em relação aos Estados Unidos, à Argentina e
mesmo ao Japão. Aquele novo interesse decorria da crescente compreensão da
importância que teve o período medieval na formação da civilização ocidental,
da qual nosso país faz parte. Assim, revelava-se estimulante, ainda que problemático,
elaborar uma obra adequada à nossa realidade acadêmica, sem tradição
medievalística e distanciada dos grandes centros historiográficos
especializados naquela época. De fato, como num número limitado de páginas
(decorrência das condições de nosso mercado editorial) tratar de assunto tão
rico e complexo? Naturalmente, não se poderia dar por conhecidos todos os fatos
importantes (o que seria desconsiderar a situação em que o aluno chega à
universidade), centrando-se apenas na sua análise. Mas tampouco se deveria
fazer uma mera descrição dos principais eventos da Idade Média, o que fugiria
àquilo que nos parece a razão de ser da História: a compreensão do passado para
se lançar luz sobre a compreensão do presente. Vencidas as hesitações, definido
o espírito do livro, partimos para sua elaboração. Hoje o relançamos, revisto e
ampliado, graças a uma dupla constatação. De um lado, o interesse dos
brasileiros pela Idade Média não foi um mero modismo. Nesses últimos anos ele
consolidou-se, atraiu um público fiel aos cursos e palestras sobre o tema,
permitiu a tradução de diversas obras importantes sobre o assunto, gerou mesmo
uma certa produção nacional no setor. De outro lado, vários anos e várias
edições depois, parece-nos que a fórmula adotada por este livro mereceu o
interesse dos colegas e dos estudantes. Por essa razão, ela foi mantida nesta
nova edição, na qual realizamos pequenas correções e muitos acréscimos,
inclusive de todo um capítulo.
A intenção do livro continua,
portanto, a ser a da busca de equilíbrio entre as informações e suas
interpretações. Claro que a escolha tanto de umas quanto de outras será sempre
discutível. Mas ela não seguiu apenas preferências pessoais do autor: o
critério básico foi acompanhar — nos limites de um pequeno manual — as
tendências c as conquistas mais recentes da historiografia especializada. Não
deixamos, porém, de apontar algumas questões polêmicas ou tópicos a serem ainda
explorados pelo medievalistas. Tais indicações, apesar de rápidas, ficam como
sugestões para eventuais pesquisas futuras por parte do leitor. A concepção do
livro não segue a estrutura tradicional, cronológica, e sim
temático-cronológica. Isto é, cada grande tema (economia, política, cultura
etc.) corresponde a um capítulo, dentro do qual o assunto é desenvolvido
cronologicamente. Contudo, é natural, todo capítulo faz referências freqüentes
a assuntos tratados em outras partes. Desta forma, a relativa autonomia de cada
capítulo não prejudica o fundamental, o sentido da globalidade. Na verdade,
qualquer que fosse a arquitetura adotada por este trabalho, ela implicaria um
fracionamento do objeto de estudo, o que é um recurso inevitável de análise.
Para que se perca menos a totalidade histórica medieval, é recomendável a
leitura completa do livro, mesmo quando o interesse imediato for por um assunto
específico. Somente de posse de todos os fatos e análises é que se poderá ver
melhor as articulações profundas, as linhas evolutivas básicas da Idade Média.
Buscando aliviar o texto de definições que pareçam ser redundantes a muitos
leitores, mas sem esquecer que elas podem ser imprescindíveis a muitos outros,
optamos por assinalar tais palavras (na sua primeira aparição dentro de um
item) com um asterisco. Este remete ao Apêndice 1, colocado no fim do livro, um
glossário que também pode ser usado independentemente do texto, funcionando
como uma espécie de minidicionário técnico, que esperamos possa ser útil mesmo
a quem já tenha algumas noções de história medieval. Também em apêndice, foram
incluídos quadros que, conforme a necessidade, desenvolvem ou sintetizam
matérias tratadas ao longo da obra. Ainda como instrumento de utilização deste
manual, incluímos, além do índice geral dos capítulos, um índice de tabelas,
mapas e figuras, um outro cronológico e por fim um temático. Se se deseja
conhecer, por exemplo, a economia medieval e sua evolução, basta recorrer ao
capítulo correspondente. Mas se se quer, por hipótese, ter uma visão global da
Alta Idade Média, deve-se consultar o índice cronológico. Ou, se se quer estudar
temas como feudalismo, heresias, França etc, deve-se utilizar o índice
temático. Por economia de espaço, e para não dar um tom excessivamente
acadêmico a este texto introdutório, suprimimos as tradicionais notas de
rodapé. Contudo, não poderíamos deixar de indicar a origem de uma informação
pouco divulgada ou de uma interpretação original e/ou polêmica. Para tanto,
colocamos entre parênteses um número em negrito que indica a obra, listada na
Orientação para pesquisa, seguido de outro número que aponta a página da qual
se extraiu aquele dado ou aquela citação. No caso de artigos de revistas
especializadas, aparecem três números: o terceiro à página. Como nosso texto
fornece apenas um primeiro contato, rápido mas que esperamos sólido, com a
história medieval, no final de cada capítulo indicamos dez títulos da
Orientação para pesquisa voltados para o assunto em pauta. Aos interessados
em aprofundar ainda mais o tema, vêm a seguir outras cinco sugestões
bibliográficas, de obras mais técnicas, mais especializadas, versando sobre
determinados aspectos do capítulo em questão. O mesmo procedimento, com menor número
de indicações, foi adotado também na Introdução, na Conclusão e nos Apêndices.
Introdução
O (pré)conceito de Idade Média
Se numa conversa com homens
medievais utilizássemos a expressão “Idade Média”, eles não teriam idéia do que
estaríamos falando. Como todos os homens de todos os períodos históricos, eles
viam-se na época contemporânea. De fato, falarmos em Idade Antiga ou Média
representa uma rotulação a posteriori, uma satisfação da necessidade de se dar
nome aos momentos passados. No caso do que chamamos de Idade Média, foi o
século XVI que elaborou tal conceito. Ou melhor, tal preconceito, pois o termo
expressava um desprezo indisfarçado em relação aos séculos localizados entre a
Antigüidade Clássica e o próprio século XVI. Este se via como o renascimento da
civilização greco-latina, e portanto tudo que estivera entre aqueles picos de
criatividade artístico-literária (de seu próprio ponto de vista, é claro) não
passara de um hiato, de um intervalo. Logo, de um tempo intermediário, de uma
idade média.
A Idade Média para os renascentistas e iluministas
Admirador dos clássicos, o
italiano Francesco Petrarca (13041374) já se referira ao período anterior como
de tenebrae: nascia o mito historiográfico da Idade das Trevas. Em 1469, o
bispo Giovanni Andrea, bibliotecário papal, falava em media tempestas,
literalmente “tempo médio”, mas também com o sentido figurado de “flagelo”,
“ruína”. A idéia enraizou-se quando em meados do século XVI Giorgio Vasari,
numa obra biográfica de grandes artistas do seu tempo, popularizou o termo
“Renascimento”. Assim, por contraste, difundiram-se em relação ao período
anterior as expressões media aetas, media antiquitas e media tempora. De
qualquer forma, o critério era inicialmente filológico. Opunha-se o século XVI,
que buscava na sua produção literária utilizar o latim nos moldes clássicos,
aos séculos anteriores, caracterizados por um latim “bárbaro”. A arte medieval,
por fugir aos padrões clássicos, também era vista como grosseira, daí o grande
pintor Rafael Sanzio (1483-1520) chamá-la de “gótica”, termo então sinônimo de
“bárbara”. Na mesma linha, François Rabelais (1483-1553) falava da Idade Média
como a “espessa noite gótica”. No século XVII, foi ainda com aquele sentido
filológico que passou a prevalecer a expressão medium aevum, usada pelo francês
Charles de Fresne Du Cange em 1678 (13). Mas o sucesso do termo veio com o
manual escolar do alemão Christoph Keller (1638-1707, conhecido também pela
latinização de seu nome, Cellarius), publicado cm 1688 c intitulado Historia
Medii Aevi a temporibus Constantini Magni ad Constantinopolim a Turcis captam
deducta. Esse livro completava outros dois do autor, um dedicado aos tempos
“antigos” e outro aos “modernos”. Portanto, o sentido básico mantinha-se
renascentista: a “Idade Média” teria sido uma interrupção no progresso humano,
inaugurado pelos gregos e romanos e retomado pelos homens do século XVI. Ou
seja, também para o século XVII os tempos “medievais” teriam sido de barbárie,
ignorância e superstição. Os protestantes criticavam-nos como época de
supremacia da Igreja Católica. Os homens ligados às poderosas monarquias
absolutistas lamentavam aquele período de reis fracos, de fragmentação
política. Os burgueses capitalistas desprezavam tais séculos de limitada
atividade comercial. Os intelectuais racionalistas deploravam aquela cultura
muito ligada a valores espirituais. O século XVIII, antiaristocrático e
anticlerical, acentuou o menosprezo à Idade Média, vista como momento áureo da
nobreza e do clero. A filosofia da época, chamada de iluminista por se guiar
pela luz da Razão, censurava sobretudo a forte religiosidade medieval, o pouco
apego da Idade Média a um estrito racionalismo e o peso político de que a
Igreja então desfrutara. Sintetizando tais críticas, Denis Diderot (1713-1784)
afirmava que “sem religião seríamos um pouco mais felizes”, Para o marquês de
Condorcet (1743-1794), a humanidade sempre marchou em direção ao progresso, com
exceção do período no qual predominou o cristianismo, isto é, a Idade Média. Para Voltaire (1694-1778), os papas eram
símbolos do fanatismo e do atraso daquela fase histórica, por isso
afirmava, irônico, que “é uma prova da divindade de seus caracteres terem
subsistido a tantos crimes”. A posição daquele pensador sobre a Idade Média
poderia ser sintetizada pelo tratamento que dispensava à Igreja: “a Infame”.
A Idade Média para os românticos
O Romantismo da primeira metade do
século XIX inverteu, contudo, o preconceito em relação à Idade Média. O ponto
de partida foi a questão da identidade nacional, que ganhara forte significado
com a Revolução Francesa. As conquistas de Napoleão tinham alimentado o
fenômeno, pois a pretensão do imperador francês de reunir a Europa sob uma
única direção despertou em cada região dominada ou ameaçada uma valorização de
suas especificidades, de sua personalidade nacional, de sua história, enfim. Ao
mesmo tempo, tudo isso punha em xeque a validade do racionalismo, tão exaltado
pela centúria anterior, e que levara a Europa àquele contexto de conturbações,
revoluções e guerras. A nostalgia romântica pela Idade Média fazia com que ela
fosse considerada o momento de origem das nacionalidades, satisfazendo assim os
novos sentimentos do século XIX. Vista como época de fé, autoridade e tradição,
a Idade Média oferecia um remédio à insegurança e aos problemas decorrentes de
um culto exagerado ao cientificismo. Vista como fase histórica das liberdades,
das imunidades e dos privilégios, reforçava o liberalismo burguês vitorioso no
século XIX. Dessa maneira, o equilíbrio e a harmonia na literatura e nas artes,
que o Renascimento e o Classicismo do século XVII tinham buscado, cedia lugar à
paixão, à exuberância e à vitalidade encontráveis na Idade Média. A verdade
procurada através do raciocínio, que guiara o Iluminismo do século XVIII, cedia
lugar à valorização dos sentidos, do instinto, dos sonhos, das recordações.
Abundam então obras de
ambientação, inspiração ou temática medievais, como Fausto (1808 e 1832) de
Goethe, O corcunda de Notre Dame (1831) de Victor Hugo, os vários romances
históricos de Walter Scott (1771-1832), dentre eles Ivanhoé e Contos dos
cruzados, diversas composições de Wagner, como Tristão e lsolda (1859) e
Parsifal (1882). Essa Idade Média dos escritores e músicos românticos era tão
preconceituosa quanto a dos renascentistas e dos iluministas. Para estes dois,
ela teria sido uma época negra, a ser relegada da memória histórica. Para
aqueles, um período esplêndido, um dos grandes momentos da trajetória humana,
algo a ser imitado, prolongado. Tal atração fez o Romantismo restaurar inúmeros
monumentos medievais e construir palácios e igrejas neogóticas, mas inventando
detalhes, modificando concepções, criando a sua Idade Média. A historiografia
também não ficou imune a isso, como mostra o caso de Thomas Carlyle, que
escrevendo em 1841 afirmava ter sido a civilização feudal “a coisa mais
elevada” que a Europa tinha produzido. Mais útil para futuros estudos, apesar
de suas imperfeições, foi a organização de grandes coleções documentais, como a
Monumenta alemã (7), a Patrologia francesa (8), os Rolls Series ingleses (9),
todas elas produto da paixão do século XIX pela época medieval. De qualquer
forma, a Idade Média permanecia incompreendida. Ela ainda oscilava entre o
pessimismo renascentista/iluminista e a exaltação romântica. Aos preconceitos
anteriores juntava-se o da idealização, já antecipado por Gotthold Lessing
(1729-1781): “Noite da Idade Média, que seja! Mas era uma noite resplandecente
de estrelas”. A melhor síntese daquela oscilação está no maior historiador da
época, Jules Michelet (1798-1874). Na sua Histoire de France, ele reservou seis
volumes à Idade Média (1833-1844), definindo-a como “aquilo que amamos, aquilo
que nos amamentou quando pequenos, aquilo que foi nosso pai e nossa mãe, aquilo
que nos cantava tão docemente no berço”. Mas nas reedições de 1845-1855 ele
mostra uma Idade Média negativa, reduzida a longo preâmbulo ao século XVI,
mudança que resultava das dificuldades do presente histórico da França e do
próprio Michelet.
A Idade Média para o século XX
Finalmente,
passou-se a tentar ver a Idade Média como os olhos dela própria, não com os
daqueles que viveram ou vivem noutro momento. Entendeu-se que a função do
historiador é compreender, não a de julgar o passado. Logo, o único referencial
possível para se ver a Idade Média é a própria Idade Média. Com base nessa
postura, e elaborando, para concretizá-la, inúmeras novas metodologias e técnicas,
a historiografia medievalística deu um enorme salto qualitativo. Sem risco de
exagerar, pode-se dizer que o medievalismo se tornou uma espécie de carro-chefe
da historiografia contemporânea, ao propor temas, experimentar métodos, rever
conceitos, dialogar intimamente com outras ciências humanas. Isso não apenas
deu um grande prestígio à produção medievalística nos meios cultos como
popularizou a Idade Média diante de um público mais vasto e mais consciente do
que o do século XIX. O que não significa que a imagem negativa da Idade Média tenha
desaparecido. Não é raro encontrarmos pessoas sem conhecimento histórico ainda
qualificando de “medieval” algo que elas reprovam. Pior, mesmo certos eruditos
não conseguem escapar ao enraizamento do sentido depreciativo atribuído desde o
século XVI à Idade Média. Ao analisar as dificuldades do fim do século XX, o
francês Alain Minc falou mesmo em uma “Nova Idade Média”. No entanto, de forma
geral, os tradicionais juízos de valor sobre aquele período parecem recuar. Isso
não quer dizer, é claro, que os historiadores do século XX tenham resgatado a
“verdadeira” Idade Média. Ao examinar qualquer período do passado, o estudioso
necessariamente trabalha com restos, com fragmentos — as fontes primárias, no
jargão dos historiadores — desse passado, que portanto jamais poderá ser
integralmente reconstituído. Ademais, o olhar que o historiador lança sobre o
passado não pode deixar de ser um olhar influenciado pelo seu
presente. Na célebre
formulação de Lucien Febvre, feita em 1942 no seu Le problème de l'incroyance
au XVI siècle. La religion de Rabelais, “a História é filha de seu tempo”, por
isso cada época tem “sua Grécia, sua Idade Média e seu Renascimento”. De fato,
a historiografia é um produto cultural que, como qualquer outro, resulta de um
complexo conjunto de condições materiais e psicológicas do ambiente individual
e coletivo que a vê nascer. Daí a história política ter-se desenvolvido nas
cidades-Estado gregas, a história de hagiografias* nos mosteiros medievais, a história
dinástica e nacional nas cortes monárquicas modernas, a história econômica no
ambiente da industrialização dos séculos XIX-XX, a história das mentalidades no
contexto das inquietações e esperanças da segunda metade do século XX. Logo,
apesar de neste momento fazermos uma história medieval baseada em maior
disponibilidade de fontes e em técnicas mais rigorosas de interpretação dessas
fontes, não podemos afirmar que a leitura da Idade Média realizada pelo século
XX é a definitiva. Feitas essas ressalvas metodológicas obrigatórias, o que
devemos entender por Idade Média, pelo menos no atual momento historiográfico?
Trata-se de um período da história européia de cerca de um milênio, ainda que
suas balizas cronológicas continuem sendo discutíveis. Seguindo uma perspectiva
muito particularista (às vezes política, às vezes religiosa, às vezes
econômica), já se falou, dentre outras datas, em 330 (reconhecimento da
liberdade de culto aos cristãos), em 392 (oficialização do cristianismo), em
476 (deposição do último imperador romano) e em 698 (conquista muçulmana de
Cartago) como o ponto de partida da Idade Média. Para seu término, já se pensou
em 1453 (queda de Constantinopla e fim da Guerra dos Cem Anos), 1492
(descoberta da América) e 3517 (início da Reforma Protestante). Sendo a
História um processo, naturalmente se deve renunciar à busca de um fato
específico que teria inaugurado ou encerrado um determinado período. Mesmo
assim os problemas permanecem, pois não há unanimidade sequer quanto ao século
em que se deu a passagem da Antigüidade para a Idade Média. Tampouco há acordo
no que diz respeito à transição dela para a Modernidade. Mais ainda, apesar da
existência de estruturas básicas ao longo daquele milênio, não se pode pensar,
é claro, num imobilismo. Passou-se então a subdividir a história medieval em
fases que apresentaram certa unidade interna. Mas também aqui não chega a haver
consenso entre os historiadores. A periodização que propomos a seguir não é a
única aceitável, ainda que nos pareça mais adequada à maneira como montamos
este livro, isto é, buscando a compreensão das estruturas (e não dos eventos)
medievais. Se não, vejamos. O período que se estendeu de princípios do século
IV a meados do século VIII sem dúvida apresenta uma feição própria, não mais
“antiga” e ainda não claramente “medieval”. Apesar disso, talvez seja melhor
chamá-la de Primeira Idade Média do que usar o velho rótulo de Antigüidade
Tardia, pois nela teve início a convivência e a lenta interpenetração dos três
elementos históricos que comporiam todo o período medieval. Elementos que, por
isso, chamamos de Fundamentos da Idade Média: herança romana clássica, herança
germânica, cristianismo. A participação do primeiro deles na formação da Idade
Média deu-se sobretudo após a profunda crise do século III, quando o Império
Romano tentou a sobrevivência por meio do estabelecimento de novas estruturas,
que não impediram (e algumas até mesmo aceleraram) sua decadência, mas que
permaneceriam vigentes por séculos (Apêndice 2).
Foi o caso, por
exemplo, do caráter sagrado da monarquia, da aceitação de germanos no exército
imperial, da petrificação da hierarquia social, do crescente fiscalismo sobre o
campo, do desenvolvimento de uma nova espiritualidade que possibilitou o
sucesso cristão. Nesse mundo em transformação, a penetração germânica
intensificou as tendências estruturais anteriores, mas sem alterá-las. Foi o
caso da pluralidade política substituindo a unidade romana, da concepção de
obrigações recíprocas entre chefe e guerreiros, do deslocamento para o norte do
eixo de gravidade do Ocidente*, que perdia seu caráter mediterrânico. O
cristianismo, por sua vez, foi o elemento que possibilitou a articulação entre
romanos e germanos, o elemento que ao fazer a síntese daquelas duas sociedades
forjou a unidade espiritual, essencial para a civilização medieval. Isso foi
possível pelo próprio caráter da Igreja nos seus primeiros tempos. De um lado,
ela negava aspectos importantes da civilização romana, como a divindade do
imperador, a hierarquia social, o militarismo. De outro, ela era um
prolongamento da romanidade, com seu caráter universalista, com o cristianismo
transformado em religião do Estado, com o latim que por intermédio da
evangelização foi levado a regiões antes inatingidas. Completada essa síntese,
a Europa católica entrou em outra fase, a Alta Idade Média (meados do século
VIII-fins do X). Foi então que se atingiu, ilusoriamente, uma nova unidade
política com Carlos Magno, mas sem interromper as fortes e profundas tendências
centrífugas que levariam posteriormente à fragmentação feudal. Contudo, para se
alcançar essa efêmera unidade, a dinastia Carolíngia precisou ser legitimada
pela Igreja, que pelo seu poder sagrado considerava-se a única e verdadeira
herdeira do Império Romano. Em contrapartida, os soberanos Carolíngios
entregaram um vasto bloco territorial italiano à Igreja, que desta forma se
corporificou e ganhou condições de se tornar uma potência política atuante.
Ademais, dando força de lei ao antigo costume do pagamento do dízimo à Igreja,
os Carolíngios vincularam-na definitivamente à economia agrária da época.
Graças a esse temporário encontro de interesses entre a demográfica. Iniciou-se
então a expansão territorial cristã sobre regiões pagãs Igreja e o Império,
ocorreu uma certa recuperação econômica e o início de uma retomada — que se
estenderia pelos séculos seguintes — reformulando o mapa civilizacional da
Europa*. Por fim, como resultado disso tudo, deu-se a transformação do latim
nos idiomas neolatinos, surgindo em fins do século X os primeiros textos
literários em língua vulgar. Mas a fase terminaria em crise, devido às
contradições do Estado Carolíngio e a uma nova onda de invasões (vikings,
muçulmanas, magiares). A Idade Média Central (séculos XI-XIII) que então começou
foi, grosso modo, a época do feudalismo, cuja montagem representou uma resposta
à crise geral do século X. De fato, utilizando material histórico que vinha
desde o século IV, aquela sociedade nasceu por volta do ano 1000, tendo
conhecido seu período clássico entre os séculos XI e XIII. Assim reorganizada,
a sociedade cristã ocidental conheceu uma forte expansão populacional c uma
conseqüente expansão territorial, da qual as Cruzadas são a face mais
conhecida. Graças à maior procura de mercadorias e à maior disponibilidade de
mão-de-obra, a economia ocidental foi revigorada e diversificada. A produção
cultural acompanhou essa tendência nas artes, na literatura, no ensino, na
filosofia, nas ciências. Aquela foi, portanto, em todos os sentidos, a fase
mais rica da Idade Média, daí ter merecido em todos os capítulos deste livro
uma maior atenção. Mas aquelas transformações atingiram a própria essência do
feudalismo — sociedade fortemente estratificada, fechada, agrária, fragmentada
politicamente, dominada culturalmente pela Igreja. De dentro dela, e em
concorrência com ela, desenvolveu-se um segmento urbano, mercantil, que buscava
outros valores, que expressava e ao mesmo tempo acelerava as mudanças
decorrentes das próprias estruturas feudais. Aquela sociedade passava da etapa
feudo-clerical* para a feudo-burguesa*, na qual o segundo elemento ia lenta mas
firmemente sobrepujando o primeiro: emergiam as cidades, as universidades, a
literatura vernácula, a filosofia racionalista, a ciência empírica, as
monarquias nacionais. Os conservadores, como Dante Alighieri, lamentavam tais
transformações. Inegavelmente caminhava-se para novos tempos. A Baixa Idade
Média (século XIV-meados do século XVI) com suas crises e seus rearranjos,
representou exatamente o parto daqueles novos tempos, a Modernidade. A crise do
século XIV, orgânica, global, foi uma decorrência da vitalidade e da contínua
expansão (demográfica, econômica, territorial) dos séculos XI-XIII, o que
levara o sistema aos limites possíveis de seu funcionamento. Logo, a
recuperação a partir de meados do século XV deu-se em novos moldes, estabeleceu
novas estruturas, porém ainda assentadas sobre elementos medievais: o
Renascimento (baseado no Renascimento do século XII), os Descobrimentos
(continuadores das viagens dos normandos e dos italianos), o Protestantismo
(sucessor vitorioso das heresias*), o Absolutismo (consumação da centralização
monárquica). Em suma, o ritmo histórico da Idade Média foi se acelerando, e com
ele nossos conhecimentos sobre o período. Sua infância e adolescência cobriram
boa parte de sua vida (séculos IV-X), no entanto as fontes que temos sobre elas
são comparativamente poucas. Sua maturidade (séculos XI-XIII) e senilidade
(século XIV-XVI) deixaram, pelo contrário, uma abundante documentação. É essa
divisão cronológica que nos guiará ao longo do exame de cada uma das estruturas
básicas da Idade Média. Se nos capítulos a seguir dedicamos atenção desigual a cada uma
daquelas fases, é porque, grosso modo, acompanhamos inversamente o ritmo
histórico diretamente a disponibilidade de fontes e trabalhos sobre elas. c
A Idade Média para os medievais
Mas, enfim, que conceito tinham da
“Idade Média” os próprios medievos? Questão difícil de ser respondida, apesar
dos progressos metodológicos das últimas décadas. A resposta, mesmo provisória
e incompleta, precisaria ser matizada no tempo e no espaço, e ainda considerar
pelo menos duas grandes vertentes, a do clero, elaborada a partir de
interpretações teológicas, e a dos leigos, presa a concepções antigas,
pré-cristãs. Simplificadamente, essa bipolarização quanto à História partia de
duas visões distintas quanto ao tempo. A postura pagã, fortemente enraizada na
psicologia coletiva*, aceitava a existência de um tempo cíclico, daquilo que se
chamou de “mito* do eterno retorno”. Ou seja, as primeiras sociedades só
registravam o tempo biologicamente, sem transformá-lo em História, portanto sem
consciência de sua irreversibilidade. Isso porque, para elas, viver no real era
viver segundo modelos extra-humanos, arquetípicos. Assim, tanto o tempo sagrado
(dos rituais) quanto o profano (do cotidiano) só existiam por reproduzir atos
ocorridos na origem dos tempos. Daí a importância da festa de Ano-Novo, que era
uma retomada do tempo no seu começo, isto é, uma repetição da cosmogonia, com
ritos de expulsão de demônios e de doenças. Tal concepção sofreu sua primeira
rejeição com o judaísmo, que vê em Iavé não uma divindade criadora de gestos
arquetípicos, mas uma personalidade que intervém na História. O cristianismo retornou
e desenvolveu essa idéia, enfatizando o caráter linear da História, com seu
ponto de partida (Gênese), de inflexão (Natividade) e de chegada (Juízo Final).
Portanto, linear mas não ao infinito, pois há um tempo escatológico* — que só
Deus conhece — limitando o desenrolar da História, isto é, da passagem humana
pela Terra. Contudo, se o cristianismo reinterpretou a História, não pôde
deixar de sentir seu peso, inclusive da mentalidade* cíclica, daí a liturgia
cristã basear-se na repetição periódica e real de eventos essenciais como
Natividade, Paixão e Ressurreição de Jesus: ao participar da reprodução do
evento divino, o fiel volta ao tempo em que ele ocorreu. Ou seja, a
cristianização das camadas populares não aboliu a teoria cíclica, pelo
contrário, influenciou o cristianismo erudito e reforçou certas categorias do
pensamento mítico. Em virtude disso, pelo menos até o século XII os medievos
não sentiam necessidade de maior precisão no cômputo do tempo, o que expressava
e acentuava a falta de um conceito claro sobre sua própria época. De maneira
geral, prevalecia o sentimento de viverem em “tempos modernos”, devido à
consciência que tinham do passado, dos “tempos antigos”, pré-cristãos. Estava
também presente a idéia de que se caminhava para o Fim dos Tempos, não muito
distante. Espera difusa, que raramente se concentrou em momentos precisos.
Sabemos hoje que os pretendidos “terrores do ano 1000” foram uma criação
historiográfica, pois não houve nenhum sentimento especial e generalizado de
que o mundo fosse acabar naquele momento. Mas c inegável que a psicologia
coletiva* medieval esteve constantemente (ainda que com flutuações de
intensidade) preocupada com a proximidade do Apocalipse. Catástrofes naturais
ou políticas eram freqüentemente interpretadas como indícios da chegada do
Anticristo. Havia uma difundida visão pessimista do presente, porém carregada
de esperança no iminente triunfo do Reino de Deus. Nesse sentido, a visão de
mundo medieval trazia implícita em si a concepção de um tempus medium, precedendo
a Nova Era. Tempo não monolítico, dividido em várias fases. A quantidade e a
caracterização delas não eram, contudo, consensuais. A periodização mais comum,
ao menos entre o clero, concebia seis fases históricas, de acordo com os dias
da Criação. Como no sétimo dia Deus descansou, na sétima fase os homens
descansarão no seio de Deus. Assim pensavam muitos, de Santo Agostinho
(354-430) e Isidoro de Sevilha (560-636) até Fernão Lopes (1380-1460). Também
teve sucesso uma concepção trinitária da História, surgida no século IX com
João Escoto Erígena (ca. 830-ca. 880) e que teve seu maior representante no
monge cisterciense Joaquim de Fiore (1132-1202). Para este, a Era do Pai
ter-se-ia caracterizado pelo temor servil à lei divina, a Era do Filho pela sabedoria,
fé e obediência humilde, a do Espírito Santo (que começaria em 1260) pela
plenitude do conhecimento, do amor universal e da liberdade espiritual.
Qualquer que fosse a divisão temporal adotada, reconhecia-se que o suceder das
fases acabaria com a Parusia*, quando a História enquanto tal deixaria de
existir.
Bibliografia básica: 2, 4, 17, 67, 98. Bibliografia complementar: M.
CARRUTHERS, The book of memory. A study of memory in medieval culture, Cambridge. CUP, 1990;
B. GUENÉE, Histoire et culture historique dans l'Occident Médiéval, Paris,
Aubier, 1980; E. MITRE. Historiografia y mentalidades históricas en la Europa medieval, Madri,
Universidad Complutense, 1982.
Capítulo 1 As estruturas demográficas
O surgimento da Demografia
Histórica, há menos de cinco décadas, enriqueceu consideravelmente o arsenal do
historiador na sua tarefa de compreensão do passado, e os medievalistas não
poderiam, é claro, ficar indiferentes a ela. Apareceram assim vários trabalhos
metodológicos sobre as especificidades da demografia medieval e inúmeras
monografias sobre as condições populacionais de mosteiros, senhorios*, cidades
e mesmo regiões mais amplas. A partir de tais estudos esboçaram-se sínteses
parciais, e hoje já vemos com certa clareza as estruturas demográficas medievais.
Sem dúvida, a Idade Média estava na etapa que os especialistas chamam de Antigo
Regime Demográfico, típico das sociedades agrárias, pré-industriais: alta taxa
de natalidade e alta taxa de mortalidade. Em razão disso, a conjugação de
certos fatores (estiagens, enchentes, epidemias etc.) por poucos anos seguidos
alterava o quadro demográfico ao elevar ainda mais a mortalidade. Ou, pelo
contrário, a ausência de eventos daquele tipo rapidamente produzia um saldo
populacional positivo. Como Roberto Lopez acertadamente chamou a atenção (70:
120), toda espécie, inclusive a humana, tem tendência natural a se multiplicar,
desde que não haja obstáculos externos para isso. Ora, a história demográfica
medieval é exatamente a história da presença e da remoção desses obstáculos.
A retração da Primeira Idade Média
Do ponto de vista demográfico, a
primeira fase medieval foi um prolongamento da situação do Império Romano, cuja
população conhecera um claro recuo desde o século II. Com a crescente
desorganização do aparelho estatal romano, foram rareando as importações de
gêneros alimentícios que tinham por séculos permitido a existência de uma
grande população urbana. As cidades começaram a se esvaziar, cada região tentou
passar a produzir tudo aquilo de que necessitasse, Tal fenômeno paradoxalmente
aumentou a insegurança, pois bastava uma má colheita para que a mortalidade
naquele local rapidamente se elevasse, devido às dificuldades em obter
alimentos em outras regiões. Não por acaso, a hagiografia* da época freqüentemente
relata milagres alimentares: santo era sobretudo o homem que conseguia
alimentos para seus concidadãos. Entrava-se num círculo vicioso, pois “a
fraqueza demográfica engendrava a fraqueza dos rendimentos e esta por sua vez
engendrava a fraqueza demográfica, reforçando assim a causa da pobreza”
(42:138). Contra esta situação, no século V um imperador romano proibiu as
moças menores de 14 anos de entrar para o clero, além de pressionar as viúvas a
se casarem novamente em cinco anos sob pena de em caso contrário perderem
metade dos seus bens. Por seu lado, a penetração e a fixação de germanos em
território romano não alteraram significativamente a situação. Cada grupo
invasor (franco, ostrogodo, vândalo etc.) tinha em média apenas entre 50.000 e
80.000 pessoas, computados guerreiros, mulheres e crianças. No conjunto, uma
estimativa antiga, mas de forma geral ainda aceita, calcula que o total de
germanos que se fixaram no império representava somente uns 5% da população
romana. Desta forma, não houve um reforço populacional germânico, porque a
chegada de algumas poucas dezenas de milhares de bárbaros teve como
contrapartida o despovoamento de regiões inteiras diante de seu avanço. Acima
de tudo, porém, o recuo demográfico foi produto do recrudescimento de
epidemias. Do século III ao V, de malária. Do século VI ao VIII, de varíola
conjugada com a mortífera peste. Como a difusão das doenças era acelerada pelo
deslocamento de comerciantes e soldados, elas fizeram-se mais presentes no
litoral mediterrâneo do que no interior europeu, já então mais isolado em razão
da debilidade e depois do desaparecimento do Estado romano. O sul da França e
da Itália foi atingido por quinze vagas de peste entre meados do século VI e
meados do século VIII, cada uma delas geralmente com alguns anos de duração.
Por esse motivo, “a população no Ocidente, e talvez mesmo no Oriente, atingiu
nos séculos VII e VIII seu ponto mais baixo desde o Alto Império Romano”
(BIRABEN: I, 44).
A relativa recuperação da Alta Idade Média
Foi possivelmente esse completo
despovoamento de certas regiões que permitiu a recuperação de outras, ao criar
bolsões (os locais desertos) que dificultavam a difusão da peste. De qualquer
forma, o que se percebe por meio de indícios esparsos na documentação — de interpretação
problemática — indica uma certa retomada demográfica na segunda metade do
século VIII. Esse fato talvez esteja ligado à reorganização promovida pelos
Carolíngíos, e talvez ajude mesmo a explicar a expansão territorial realizada
por Carlos Magno. Contudo, essa recuperação foi desigual no tempo e no espaço.
Em muitos locais, em muitos momentos, a fome e a mortalidade continuavam
acentuadas. Uma crônica da região do Mosela afirma, em fins do século VIII, que
“os homens comiam os excrementos uns dos outros, homens comiam homens, irmãos
comiam seus irmãos, as mães comiam seus filhos”. Buscando um certo equilíbrio
entre o contingente populacional e os recursos existentes, a sociedade
alto-medieval lançava mão de vários expedientes de controle de natalidade. Daí
o pequeno número de crianças, apenas 2% da população camponesa. Em parte, isso
se devia às práticas anticonceptivas e abortivas, apesar de duramente punidas
pela Igreja. Em parte, era resultado da elevada proporção de viúvos e
celibatários naquela sociedade. Em parte, decorria do infanticídio,
especialmente o feminino, estudado por Emily Coleman (19: 1974, 315-335): para
ter menos bocas para alimentar, sacrificavam-se muitos recém-nascidos do sexo
feminino, que quando adultos seriam menos produtivos que os masculinos. Apesar
de a mortalidade infantil masculina ser maior que a feminina, a taxa de
masculinidade (isto é, a proporção homens/mulheres) era alta em muitas
explorações agrárias, indicando a eliminação de crianças do sexo feminino. Por
outro lado, nas grandes propriedades agrícolas, com melhores condições de
sustentar um maior número de pessoas, a taxa de masculinidade era menor, pois
aqueles sacrifícios eram menos necessários. Em suma, a recuperação populacional
da Alta Idade Média parece ter sido tímida, e logo absorvida pelos problemas
decorrentes do fracasso do Império Carolíngio e das invasões de muçulmanos,
magiares e sobretudo vikings. Provenientes da Escandinávia, estes últimos
aproveitavam-se da grande navegabilidade dos rios europeus para penetrar
profundamente em território cristão. Ainda que seja impossível avaliar o
impacto demográfico de todas aquelas invasões, parece que não foi desprezível.
Além das mortes diretamente provocadas pelos invasores, havia as mortes
indiretas, resultantes da destruição das aldeias e campos, e a perda
populacional ocasionada pela escravização de cristãos, vendidos em regiões
distantes. Os poucos dados numéricos fornecidos pelas fontes não são
confiáveis, mas as descrições dos cronistas indicam o alcance dos estragos
resultantes das incursões vikings. Um monge da região do Loire afirmava, em
meados do século IX, que “a multidão inumerável de normandos não pára de
crescer. De todos os lados os cristãos são vítimas de massacres, de pilhagens,
de devastações, de incêndios”. Escrevendo meio século depois, um monge
parisiense lamentava a aproximação dos “cruéis pagãos [que] devastam o país,
massacram os habitantes, capturam os camponeses, acorrentam-nos e enviam-nos
além-mar”.
A expansão da Idade Média Central
De toda forma, a recuperação
demográfica carolíngia, mesmo pequena, apontava para a expansão que começaria
em meados do século X. Apesar da inexistência de uma documentação quantitativa,
é inquestionável aquele crescimento na Idade Média Central, como se percebe por
cinco claros indícios. O primeiro deles, um acentuado movimento migratório. Ao
contrário da imagem tradicional, que vê o homem medieval fortemente ligado à
sua região, enraizado, sabe-se hoje que mesmo na Alta Idade Média ele se
deslocava ocasionalmente, conforme as necessidades impostas pela agricultura ou
pela guerra. Jacques Le Goff observou que “a propriedade era quase desconhecida
na Idade Média como realidade material ou psicológica”, não estabelecendo, seja
para o nobre, seja para o camponês, uma ligação afetiva com a terra habitada e
trabalhada, por isso “a mobilidade dos homens da Idade Média foi extrema e
desconcertante” (64:I,172). De fato, podemos constatar para aquela fase a
ocorrência de quatro grandes tipos de migração: 1) migrações habituais, ou
seja, deslocamentos de população (por exemplo para arrotear novas áreas),
migrações sazonais (como no inverno, a busca de pastos ainda verdes), migrações
temporárias (vassalos indo prestar o consilium na corte do seu senhor feudal,
clérigos dirigindo-se a um concilio* ou sínodo), atração dos centros urbanos
(que exerceram forte sedução nos séculos XIIXIII, ao possibilitar aos
camponeses uma nova condição social e econômica), mobilidade militar (como a
conquista da Inglaterra pelos normandos ou as Cruzadas); 2) migrações
coloniais, como as que levaram à formação de entrepostos comerciais italianos
no Oriente, a fixação de franceses nas áreas reconquistadas aos muçulmanos na
Espanha, de alemães nas regiões arrancadas aos eslavos na Europa Oriental, de
católicos nos territórios tirados aos islamitas no Oriente Médio (Cruzadas) ou
aos hereges cátaros no sul da França; 3) migrações extraordinárias, como o
êxodo de mouros (empurrados para o sul da Península Ibérica com o avanço da
Reconquista Cristã) e de judeus (perseguidos pelas primeiras Cruzadas e
expulsos da Inglaterra em 1290 e da França em 1306). E também todo tipo de
migrações forçadas, caso dos escravos vendidos por mercadores italianos nas
regiões islâmicas do Oriente; 4) migrações sem instalação, como os movimentos
de errantes (marginais, aventureiros, clérigos sem domicílio fixo como os
célebres goliardos*) e de peregrinos (tanto em direção a centros regionais de
peregrinação* quanto Compostela). Um segundo indício da expansão demográfica da
Idade Média Central é o movimento de arroteamentos, que fazia recuar as
florestas, os terrenos baldios, as zonas pantanosas. Iniciados no século VIII,
com os primeiros sinais de recuperação demográfica, os arroteamentos foram
intensificados no século X e ganharam grande impulso no século XII, quando o
ritmo de crescimento populacional tornou-se mais rápido. Esse fenômeno revelava
a necessidade de se criar novas áreas cultiváveis, de se formar novas unidades
produtivas no setor básico da economia, a agricultura. Assim, paralelamente à
expansão territorial por meio de conquista militar, a Cristandade* latina
expandia-se também no seu próprio interior. De acordo com a tipologia dos
arroteamentos estabelecida por Georges Duby (43:I,149-169), havia três espécies
deles. O primeiro deu-se pelo alargamento dos terrenos cultivados há muito
tempo, com a ocupação das terras virgens limítrofes. Tais empreendimentos não
foram realizados por monges, como se acreditava até recentemente, mas por
nobres desejosos de estender seus senhorios* e, principalmente, por camponeses
que formavam propriedades à custa dos bosques senhoriais. O segundo tipo de
arroteamento dava-se pela fundação de novas aldeias, às vezes erguidas por
razões de segurança nas fronteiras de um principado ou às margens de uma rota
importante. Outras vezes o objetivo era econômico: para os bispos levantar
dízimos, para os senhores laicos obter rendimentos provenientes do exercício de
seus direitos de ban*. O último tipo de arroteamento era o povoamento intercalado
realização de iniciativas individuais, de pioneiros que agiam isoladamente, na
busca mais de pastos que de terras cultiváveis. Terceiro indício: aumento do
preço da terra e do trigo. Apesar da migração dos excedentes populacionais de
uma região para outra e apesar ainda do alargamento da área produtiva graças
aos arroteamentos, a Europa católica não conseguia reequilibrar a oferta e a
demanda pelo principal meio de produção, a terra, e conseqüentemente pelos bens
de a Jerusalém, Roma e consumo vitais, sobretudo o trigo. Na Inglaterra, por
exemplo, entre 1160 e 1300 ele teve seu valor quase triplicado. Na tentativa de
superar esse problema, maiores extensões de terra foram entregues à
triticultura, reduzindo as áreas de pastagem: em razão disso, na década de 1210
o preço da ovelha era 132% e o da vaca 155% maior do que meio século antes. Em
alguns locais da Normandia, no norte francês — como em vários outros da Europa
ocidental cristã — a densidade demográfica era em 1313 maior que a atual. Não
surpreende, portanto, que entre 1200 e 1300 o preço da terra na Normandia tenha
aumentado de sete a dez vezes. Outra indicação da expansão demográfica do
Ocidente cristão está no acentuado crescimento da população urbana naquele
período. Enquanto por volta do ano 1000 talvez não existisse na Europa católica
nenhuma cidade com uma população de 10.000 habitantes (70: 263), no século XIII
havia 55 cidades com um número de habitantes superior àquele: duas na
Inglaterra, seis na Península Ibérica, oito na Alemanha, 18 na França e Países
Baixos, 21 na Itália (56: 247). Esta última era não apenas a região mais
urbanizada do Ocidente* como também a que possuía as maiores cidades. Ainda que
as cifras sejam sempre discutíveis, sem haver consenso entre os especialistas,
Milão, Florença, Veneza e Gênova devem ter ultrapassado os 100.000 habitantes.
No restante da Europa Ocidental, apenas Paris parece ter alcançado tal
população. Contudo, é importante lembrar, a Cristandade ocidental continuava a
ser essencialmente rural, já que no século XIII não mais de 20% de sua
população total vivia em centros urbanos (56: 158). Se em fins da Idade Média
pôde surgir na Toscana, Itália central, um provérbio segundo o qual “o campo
produz animais, a cidade produz homens”, é porque se tratava da região européia
mais fortemente urbanizada. Na verdade, o crescimento populacional das cidades
fazia-se em grande parte graças ao capital demográfico recebido do campo. Nos
locais onde o campo não podia fornecer grandes contingentes, como na Península Ibérica,
a população urbana crescia por si mesma, porém de forma menos intensa. Um
quinto indício de que a população européia ocidental crescia bastante entre os
séculos XI e XIII é proporcionado pelas transformações sofridas pela
arquitetura religiosa. A própria passagem do românico para o gótico — deixando
de lado por ora todas as suas implicações estéticas, filosóficas, mentais
(Apêndice 3) — reflete a necessidade de áreas internas maiores, capazes de
abrigar um número crescente de fiéis. Em vários casos, a construção de grandes
igrejas devia-se à busca de prestígio por parte de uma cidade ou de um
importante personagem, e mesmo a um revigorar da espiritualidade*, mas devia-se
sobretudo ao desejo de abrigar todo o rebanho de Cristo, cada vez maior, nas casas
de Deus. Mesmo as igrejas rurais necessitaram de reformas no século XIII, com a
reconstrução de suas naves, que se haviam tornado muito pequenas.
Significativamente, foram sobretudo as catedrais, localizadas nas cidades, que
tiveram de ser alargadas. Muitas das que foram então construídas cobriam amplas
áreas — 7.700
metros quadrados no caso de Amiens, 6.166 no de Colônia,
3.000 no de Burgos — podendo abrigar milhares de pessoas. As igrejas de
peregrinação, por sua vez, não só passaram, desde o século XI, a ser maiores
como a apresentar uma planta que comprova o crescente afluxo de peregrinos.
Surgiu assim o deambulatório, corredor curvo que saindo de uma nave lateral
passa pelas capelas na cabeceira da igreja e desemboca na outra nave lateral,
organizando desta forma a passagem das multidões de fiéis diante das relíquias*
sagradas colocadas nas capelas. Todos esses testemunhos apontam, portanto, para
um forte crescimento demográfico entre os séculos XI e XIII, mas é extremamente
difícil quantificá-lo. De maneira geral, a documentação medieval fornece poucos
dados populacionais que permitem um tratamento estatístico. Apenas as fontes
inglesas são suficientemente ricas para tanto.
Portanto, mesmo sem se poder
quantificar com maior rigor e precisão a expansão demográfica da Idade Média
Central, ela é inegável. Assim, é preciso pensar nas razões desse fenômeno. De
início, devemos lembrar que naquele período dois fatores que anteriormente
elevavam a mortalidade tiveram seu alcance reduzido. O primeiro deles — ainda
insuficientemente esclarecido — foi a ausência de epidemias, com o recuo da
peste e da malária, continuando apenas a lepra a ter certa intensidade. Talvez,
como já vimos, a fraca densidade populacional anterior tenha funcionado como um
diluidor e amenizador dos deslocamentos de bactérias. O segundo fator a
considerar é o tipo de guerra, que não envolvia grandes tropas de combatentes
anônimos, como nas legiões romanas ou nos exércitos nacionais modernos: a
guerra feudal era feita por pequenos bandos de guerreiros de elite, os
cavaleiros. As batalhas propriamente ditas eram raras. Prevaleciam as ações
individuais dos guerreiros, e não uma ação coletiva coordenada. Apesar dos
laços de vassalagem* e de parentesco, uma luta entre dois grupos de nobres feudais
envolvia geralmente poucas dezenas de guerreiros, raramente algumas centenas.
Quando da invasão da Inglaterra, em 1066, Guilherme da Normandia contava com
4.000 cavaleiros comandados por 200 barões. Na importante batalha de Bouvines,
em 1214, na qual se jogou a sorte da França capetíngia, do Império Angevino e
do Santo Império, Filipe Augusto contou com apenas 900 cavaleiros e 5.000
infantes. E claro que durante essas lutas alguns senhorios eram devastados,
porém o efeito destruidor da guerra geralmente fazia-se sentir apenas de forma
local. O raio de ação de um grupo de cavaleiros era bastante reduzido, em
virtude das dificuldades de deslocamento e de aprovisionamento. Aqueles
guerreiros irrequietos e pouco disciplinados não se mantinham muito tempo em campanha. O contrato
feudo-vassálico estipulava quase sempre um serviço militar de 40 dias anuais,
sendo problemático mesmo para um senhor feudal poderoso reunir seus vassalos
por um prazo superior. Em razão disso, sempre que possível os reis tentavam
contratar guerreiros mercenários, demográfico. Acima de tudo, a guerra feudal
não objetivava a morte do adversário, apenas sua captura. Como uma das
obrigações vassálicas era pagar o resgate do senhor aprisionado, c como na
pirâmide hierárquica feudal quase todo nobre, além de ser vassalo de outros,
tinha seus próprios vassalos, capturar um inimigo na guerra era obter um
rendimento proporcional à importância do prisioneiro. Por isso, os cronistas
lamentavam as batalhas mais violentas, nas quais a morte de alguns cavaleiros
representava a perda de polpudos resgates. Além disso, o instrumental bélico
era mais defensivo que destruidor. É significativo que as bestas — dotadas de
molas metálicas e portanto de poderoso arremesso, que penetrava uma armadura a
até 270 metros
de distância — tenham sido proibidas no II Concilio de Latrão, em 1139, por
serem consideradas mortíferas. Mas a remoção de fatores obstaculizadores do
crescimento populacional não explica tudo. É preciso considerar a ocorrência de
fatores facilitadores daquele fenômeno. O primeiro deles era a abundância de
recursos naturais. Já observamos que com o recuo demográfico dos alternativa
possibilitada pelo próprio crescimento séculos II-VIII Extensas áreas
anteriormente cultivadas foram abandonadas, permitindo a recuperação das
florestas, que tinham sido fortemente exploradas pelos antigos. Dessa forma, no
início da Idade Média Central o espaço cultivado era muito restrito,
predominando a natureza virgem, da qual homens tiravam importantes complementos
à alimentação. A abundância de terras cultiváveis fica atestada pelos
arroteamentos empreendidos durante a Idade Média Central, possíveis graças à
existência de largos espaços a serem conquistados à natureza. Diante disso, é
possível pensar que o aumento da produtividade agrícola nos séculos XI-XII
deveu-se, pelo menos em parte, ao fato de se cultivarem terras virgens — ou
praticamente isso, por terem ficado inexploradas por longo tempo — e portanto
de maior fertilidade. Outro fator que contribuiu para a expansão demográfica
medieval foi a suavização do clima. Ainda que insuficientemente explicado, o
fenômeno parece indiscutível e de alcance mundial, tendo ocorrido então, por
exemplo, um recuo do gelo nos mares e montanhas do norte e abundância de água
nas regiões saarianas, que depois o deserto reconquistaria. Na Europa ocidental
o clima tornou-se mais seco e temperado do que atualmente, sobretudo entre 750
e 1215. A
viticultura pôde então expandir-se em regiões anteriormente impróprias, como a
Inglaterra. A paisagem de alguns locais foi alterada e humanizada, como a
Groenlândia, que fazia jus a seu nome (literalmente, “terra verde”) e apenas no
século XIII, em virtude de novas mudanças climáticas, passou a ter icebergs em
sua direção, tornando-se inóspita. O período mais quente e seco não apenas
transformou determinadas áreas em cultiváveis e habitáveis como contribuiu para
dificultar a difusão da peste. De fato, na forma bubônica seu vetor é a pulga,
que vive sob uma temperatura de 15
a 20 graus e sob uma umidade relativa do ar de 90% a
95%. Na forma pneumônica, a peste é transmitida pelas gotículas de saliva do
homem infectado, as quais em regiões frias e úmidas ficam em suspensão na
atmosfera e penetram no organismo pela respiração. Ou seja, a pluviometria condiciona
o ritmo sazonal da peste, com a umidade do ar estimulando a epidemia se ela
estiver presente na região.
Daí nas zonas atlânticas, devido à
umidade, a peste ter-se instalado e persistido por anos sob uma forma atenuada
antes de eclodir em vagas violentas. Por último, ajuda a explicar o crescimento
populacional dos séculos X-XIII o surgimento ou difusão de uma série de
inovações nas técnicas agrícolas. Na verdade, discute-se qual teria sido o
elemento a desencadear o processo: o crescimento populacional, pressionando por
maior produção, levou ao progresso técnico, ou, ao contrário, foi o progresso
técnico que possibilitou a expansão demográfica? A primeira tese foi defendida,
dentre outros, por David Herlihy (22: 1958, 23) e a segunda, por estudiosos como
Georges Duby (43:1, 211). De qualquer forma, dentre os aperfeiçoamentos
técnicos da época, três exerceram uma ação direta sobre a elevação da
produtividade agrícola: a nova atrelagem dos animais, a charrua pesada e o
sistema trienal. O primeiro deles teve efeitos importantes, pois na Antigüidade
a força motriz do cavalo era fraca, nunca sendo usada nos trabalhos agrícolas,
porque uma parelha deslocava menos de 500 quilos, enquanto a partir da Idade
Média Central passou a deslocar até mais de 5 toneladas (57: 63). A nova
atrelagem substituiu as correias colocadas no pescoço do animal, que
pressionavam a jugular e a traquéia, por uma espécie de coleira rígida que não
estrangulava. Assim, o cavalo pôde desde então ser utilizado nos serviços
agrícolas, o que representou um grande ganho de energia: boi e cavalo têm a
mesma força de tração, porém este último desloca-se uma vez e meia mais rápido
e pode trabalhar uma ou duas horas a mais por dia (96: 62). Viabilizou-se dessa
forma a utilização da charrua, que talvez tenha sido introduzida na Europa
ocidental pelos germanos na Primeira Idade Média, mas que era muito pesada e
requeria força motriz animal. Assim, durante os primeiros sete ou oito séculos
medievais continuou-se a empregar o velho arado romano, eficiente apenas nos
solos ligeiros das regiões mediterrâneas. A expansão agrícola para regiões de
solos mais profundos e duros tornou a charrua indispensável, pois ela não se
limita a arranhar a camada superior do solo, revolvendo a terra e trazendo para
cima os nutrientes acumulados nas camadas inferiores. Além disso, ela economiza
mão-de-obra ao dispensar a tarefa de cavar o solo com enxada antes de semeá-lo.
De especial importância, no entanto, foi o sistema trienal, possivelmente a
mais influente inovação agrícola da época. De um lado, porque a divisão da
terra cultivável em três partes aumentou a extensão da área produtiva, deixando
apenas um terço em pousio*, contra metade no sistema bienal dos séculos
anteriores. De outro lado, porque o sistema trienal alterou os próprios hábitos
alimentares: uma parte da terra era semeada com cereais de inverno (trigo e
centeio) e outra com cereais de primavera (cevada e aveia), esta principalmente
para cavalos, daí a estreita relação entre sistema trienal e uso daquele animal.
A sementeira de primavera, além dos cereais, compreendia quase sempre
leguminosas (ervilhas, lentilhas, favas), que nitrogenando o solo mantêm sua
fertilidade, além de fornecer proteínas para a alimentação humana. Este é um
ponto fundamental. As inovações tecnológicas não apenas produziram uma maior
quantidade de alimentos como, sobretudo, uma melhor qualidade. Até aquela época
a dieta era mal balanceada, porque, baseada em cereais, fornecia muitas
calorias e hidrato de carbono e poucas proteínas e vitaminas. A alteração então
ocorrida na dieta talvez explique a mudança na proporção entre população
masculina e feminina, favorável à primeira na Alta Idade Média e à segunda
posteriormente. Como mostrou o estudo de Bullough e Campbell (22: 1980,
317325), até o século X ou XI a mulher ingeria pequena quantidade de ferro, que
seu organismo necessita em proporção maior do que o do homem, devido à
menstruação, à gravidez e à lactação. Portanto, a anemia feminina era
generalizada na Alta Idade Média, daí a maior propensão das mulheres a certas
doenças. Com a introdução de leguminosas na dieta e uma presença mais assídua
de carne, peixe, ovos e queijo, a mortalidade feminina diminuiu. Tal fato teve
ampla repercussão, contribuindo até mesmo para a valorização social da mulher.
O ressurgimento da peste na Baixa Idade Média
O crescimento populacional acabou
por se revelar excessivamente elevado para as condições européias de então.
Durante o auge daquele fenômeno tinham sido ocupadas terras marginais, de menor
fertilidade, que se esgotavam em poucos anos, baixando a produtividade média e
desestabilizando o frágil equilíbrio produção-consumo. No mesmo momento em que
essa contradição se revelava mais claramente, no século XIII, ocorria uma
alteração que acentuava as dificuldades. E tal alteração, por sua vez, era ao
menos em parte produto daquela própria condição. O aumento populacional tinha
implicado a derrubada de grandes extensões florestais, já que a madeira era o
principal combustível e material de construção: em 1300 as florestas da França
cobriam 1 milhão de hectares a menos que hoje (57: 80). Dessa forma
comprometia-se o equilíbrio ecológico, provocando mudanças no regime pluvial e
portanto no clima, elemento fundamental para uma sociedade agrária como aquela.
Isso ajuda a explicar as chuvas torrenciais que em 1315-1317 atingiram a maior
parte da Europa ao norte dos Alpes, exatamente nos locais de grande devastação
florestal. O clássico estudo de Henry Lucas (22:1930, 343-377) mostra que as
chuvas constantes e a queda de temperatura prejudicavam as vinhas, a produção
do sal que se dava por evaporação, e sobretudo a produção dos cereais, cujos
grãos não cresciam nem amadureciam. Na Inglaterra, o preço de uma medida de
trigo, que era de 5 shillings em 1313, pulou para 20 em princípios de 1315 e
para 40 em meados do ano. Em Antuérpia, importante centro distribuidor de
cereais, o trigo subiu 320% em sete meses. A fome fazia grande quantidade de
vítimas. O canibalismo tornou-se comum. Diferentes epidemias agravavam a situação.
Impulsionada pela fome, muita gente vagava em busca do que comer, levando
consigo as epidemias e a desordem. Em Ypres, importante cidade do norte
europeu, cerca de 10% da população morreu em 1316. Na verdade, este foi apenas
um ensaio da crise demográfica da Baixa Idade Média, que teve seu ponto crucial
no ressurgimento da peste, então conhecida por peste negra. Ela apresentava-se
de duas formas. A bubônica (assim chamada por provocar um bubão, um inchaço)
tinha uma letalidade (relação entre os atingidos pela doença e os que morrem
dela) de 60% a 80%, com a maioria falecendo após três ou quatro semanas. A
peste pneumônica, transmitida de homem a homem, tinha uma letalidade de 100%,
fazendo suas vítimas depois de apenas dois ou três dias de contraída a doença.
Também a peste, de certa forma, resultava da desmedida expansão do período
anterior. Sempre presente no Oriente, ela atingiu a colônia genovesa de Caffa,
na Criméia, expressão da expansão territorial e comercial do Ocidente*. Contra
essa presença ocidental, os tártaros cercavam a colônia italiana quando a peste
se manifestou em seu exército. Recorrendo àquilo que Jean-Noël Biraben chamou
de “inovação na guerra bacteriológica” (BIRABEN: I, 53), eles arremessaram
cadáveres infectados por cima das muralhas genovesas. Abandonando o local, os
genoveses levaram a peste para Constantinopla, Messina, Gênova e Marselha.
Destes portos ela difundiu-se pelo restante da Europa. Grosso modo, a peste
propagou-se de sul para norte, quase sempre do litoral para o interior. Ela
caminhava mais rapidamente pelas principais vias de comunicação e penetrava
mais facilmente em regiões de alta densidade demográfica, produto da Idade
Média Central. Democrática e igualitária, a peste atingia indiferentemente a
todos. Ao contrário do que os historiadores sem conhecimento médico sempre
afirmaram, a má nutrição não era condição agravante. Ricos e pobres, organismos
bem e mal alimentados, eram igualmente suscetíveis à peste. A diferença residia
no fato de se estar mais ou menos exposto ao contágio. Grupos como coveiros,
médicos e padres eram mais atingidos por razões profissionais. As zonas rurais,
de população mais esparsa, eram mais poupadas que as cidades. A única
possibilidade de salvação estava em manter-se afastado dos locais tocados pela
peste. Foi o que fizeram, por exemplo, os personagens do Decameron, de Giovanni
Boccaccio, que abandonaram Florença e foram viver isolados nos arredores da
cidade enquanto a peste maltratava seus concidadãos que não tinham recursos
para fugir.
Até 1670, a Europa foi atingida
todo ano. No período crítico, o da chamada peste negra, em 1348-1350, as perdas
humanas variaram, conforme a região, de dois terços a um oitavo da população.
No conjunto, estima-se, a Europa ocidental perdeu cerca de 30% de seus
habitantes naquela ocasião, e só retomaria o nível populacional pré-peste 200
anos depois, em meados do século XVI. A peste negra foi a maior catástrofe
populacional da história ocidental: num intervalo de tempo bem menor, matou, em
termos absolutos, mais do que a Primeira Grande Guerra Mundial e, em termos
relativos, considerando-se a população européia nos dois momentos, mais do que
a Segunda Guerra Mundial.
Bibliografia básica: 41, 42, 43,
50, 52, 56, 63, 64, 70, 84. Bibliografia complementar: R ALEXANDRE, Le climat
en Europe au Moyen Âge. Contribution à l'histoire des variations climatiques de
1000 à 1425, d'après les sources narratives de l'Europe occidentale, Paris,
EHESS, 1987; J. -N. BIRABEN, Lês hommes et Ia peste en France et dans les pays européens
en mèditerranéens, Paris-La Haye, Mouton, 1975-1976, 2 vols; O. GUYOTJEANNIN
(dir.), Population et démographie au Moyen Âge, Pau, CTHS, 1995; J. HEERS, “Les
limites des méthodes statistiques pour les recherches de démographie
médiévale”, Annales de Démographie Historique, 1968, pp. 43-72; C. McEVEDY e R.
JONES, Atlas of World Population History, Harmondsworth, Penguin, 1980.