domingo, 30 de setembro de 2012


Império Bizantino

Continuação do Império Romano no Oriente

“Rica em prestígio, mais rica ainda em dinheiro”

 

Introdução 

Muito se disse que a fé cristã foi o problema mais discutido na sociedade bizantina, levando mesmo ao surgimento de várias heresias.
Nas sociedades da Europa Ocidental isso também ocorreu?
Não, não ocorreu, pelo menos na Alta Idade Média, e não é difícil entender os motivos. Quando a Europa Ocidental viveu o processo de ruralização e a sociedade foi se restringindo aos limites do feudo, isso se manifestou no espírito dos homens da época.
Como? Por quê?
Poderíamos dizer que o espírito dos homens também se enfeudou, se fechou em limites bastantes estreitos: não havia espaço para discussão, e apenas a doutrina cristã pregada pela Igreja Católica Apostólica Romana povoava o pensamento e o sentimento humanos... As idéias cristãs eram colocadas como dogmas, inquestionáveis.
Enquanto isso, o que acontecia na sociedade bizantina?
Lá havia uma civilização urbana, e você sabe o quanto as condições de vida de uma cidade favorecem o desenvolvimento do pensamento.
E você não pode esquecer também o quanto a herança da Filosofia grega, de enorme influência na sociedade bizantina, contribuiu para um clima de polêmicas mais freqüentes, para um hábito de questionamento, típicos do pensamento filosófico.
Assim, não obstante o centro dos debates fossem temas religiosos, várias foram as interpretações surgidas sobre a origem e a natureza de Cristo. Mais ainda, muito embora as heresias fossem fruto das discussões entre os elementos eclesiásticos, elas acabavam por representar interesses políticos e econômicos de grupos sociais diversos.
Você poderá perceber bem isso no caso do Monofisismo. Por quê? Essa heresia difundiu-se nas províncias do Império Bizantino e acabou por ser identificada com aspirações de independência de parte da população síria e egípcia.
Novamente você poderá perceber a relação religião-política-economia se prestar atenção no caso da Questão Iconoclasta...
Enfim, como sempre, ao estudarmos a História das sociedades humanas, precisamos estar atentos à. relação de todos os aspectos da vida humana - o político, o econômico, o social e o ideológico. Apesar de ora um, ora outro, assumir um caráter dominante, você sabe que todos são igualmente importantes, embora o aspecto determinante do modo de vida de uma sociedade seja a forma pela qual os homens se organizara entre si, a fim de, agindo sobre a Natureza, produzirem os alimentos e os utensílios de que necessitam para sobreviverem.
E você já sabe qual era a estrutura econômica da sociedade bizantina, não é mesmo?
Vamos, então, conhecer melhor a vida dessa sociedade que tinha por capital uma cidade "rica em prestígio, mais rica ainda em dinheiro"...

Sua Formação


O Império Bizantino, também conhecido algum tempo pela denominação de Império Romano do Oriente, ofereceu grande contraste com as sociedades da Europa Ocidental:
_ O Império Romano do Ocidente foi incapaz de resistir às migrações dos germanos e hunos, fragmentando-se em reinos independentes, enquanto o Império Bizantino sobreviveu onze séculos, recorrendo à guerra e à diplomacia para repelir, desviar ou enquadrar os inúmeros povos invasores que se abateram sobre seus domínios;
_ As sociedades ocidentais européias até o século XII tenderam à ruralização e à descentralização do poder político, enquanto a sociedade bizantina manteve-se, essencialmente urbana e politicamente subordinada a uma Monarquia Despótica e Teocrática exercida pelo Basileus ou Imperador.
O Império Bizantino, contudo, teve origem romana, e os Imperadores do Oriente sempre afirmaram ser os herdeiros de Roma A crescente decadência e ruralização do Ocidente evidenciaram o contraste com o Oriente, mais rico cultural e economicamente, levando o Imperador Constantino a construir, no Oriente, a cidade de Constantinopla, destinada a ser a nova capital do Império Romano (330).
A cidade foi erguida no litoral da Tracia, entre o Mar Negro e o Mar de Mármara, em local onde outrora existira a colônia grega de Bizâncio. Este fato explica o emprego das denominações de Bizâncio ou Constantinopla para designar a cidade escolhida pelo Imperador Teodósio para ser a capital do Império Romano do Oriente (395). Na divisão então feita, o Oriente compreendia os Bálcãs, ilhas do Mar Egeu, a Ásia Menor, a Síria, a Palestina, o Egito e a Cirenaica:

Drama: “Romanização” ou “Orientalização”?


Em seus primeiros tempos, o Império Romano do Oriente conservou nítidas influências romanas, tendo as dinastias Teodosiana (395 - 457), Leonina (457 - 518) e Justiniana (518 - 610) mantido o latim como língua oficial do Estado, conservado a estrutura e as denominações das instituições político-administrativas romanas etc. A predominância étnica e cultural grega e asiática, entretanto, acabaria prevalecendo a partir do século VII.
Nos séculos IV e V, as invasões de visigodos, hunos e ostrogodos foram desviadas para o Ocidente mediante o emprego da força das armas, da diplomacia ou pelo pagamento de tributos, meios usados pelos bizantinos durante séculos para sobreviver.
Essas ameaças externas puseram em perigo a estabilidade do Império Bizantino, internamente convulsionado por questões religiosas que também envolviam divergências políticas. É o caso do Monofisismo, doutrina religiosa elaborada por Eutiques (superior de um convento de Constantinopla), centralizada na concepção de que só havia a natureza divina em Cristo. Embora considerada heresia pelo Concílio de Calcedônia (451), que reafirmou a natureza divina e a natureza humana de Cristo, a doutrina monofisista propagou-se pelas províncias asiáticas (Ásia Menor, Síria) e africanas (Egito), onde se identificou com aspirações de independência.
No século VI, Bizâncio teve no reinado de Justiniano (527 565) um dos períodos marcantes: a “primeira idade de ouro” segundo expressão de Paul Lemerle. Empenhado em reagir contra a orientalização do Império e o domínio do Ocidente pelos bárbaros, imprimiu a seu governo duas diretrizes básicas: a consolidação da autoridade imperial e a reconstituição do antigo Império Romano, mantendo o Mar Mediterrâneo como eixo da economia imperial.
Justiniano conservou ou restabeleceu os quadros administrativos romanos em todo o Império. O Direito Romano foi revisado e atualizado, para fortalecer juridicamente as bases do poder imperial e dotar o Estado de um sistema jurídico eficiente. O resultado desse trabalho é conhecido pela denominação de Corpus Juris Civilis, compreendendo quatro partes:
_ O Código de Justiniano (Novus Justinianus Codex), que continha toda a legislação romana revisada desde o Imperador Adriano
_ ODigesto ou Pandectas, que incluía um sumário da jurisprudência romana;
_ As Institutos, que constituíam um resumo para ser utilizado pelos estudiosos de Direito;
_ As Novelas ou Autênticas, que reuniam as novas leis de Justiniano.
A importância do Corpus Juris Civilis pode ser assim avaliada: “Foi neste Corpus Juris Civilis, obra-prima do Direito Romano, que os legistas da Idade Média e dos Tempos Modernos estudaram esta ciência, e foi também ele que serviu de base aos nossos códigos atuais.” – Segundo GENICOT, L. e HOUSSIAU, P., in  “Le Moyen Age”, Coleção Histoire et Humanités)
Uma política de numerosas construções públicas, atendendo a objetivos militares – centenas de fortificações (fortalezas e castelos) foram erguidos para melhor guarnecer as fronteiras - e políticos - evidenciar o poder imperial mediante obras monumentais como a Basílica de Santa Sofia - constituiu aspecto marcante do período.
A Corte imperial tornou-se mais requintada, subordinando-se à rígida etiqueta perante o Imperador ou Basileus: considerado o representante de Deus na Terra, seus poderes eram concebidos como de origem divina e todos deviam-lhe irrestrita obediência.
O caráter teocrático da Monarquia evidenciava-se nas representações da figura do Imperador em pinturas, vitrais e outras obras de arte : a cabeça imperial era rodeada de um halo, semelhante às imagens de santos. Ainda que continuasse a tradição do Dominato, o Dominus Noster inspirava-se nas Monarquias Despóticas e Teocráticas do Oriente.
Utilizando-se de poderosa frota de guerra e de numerosos exércitos, o imperador Justiniano empreendeu diversas campanhas militares no Mediterrâneo Ocidental, onde conquistou o Reino Vândalo (África do Norte), o Reino Ostrogodo (Península Italiana) e a região sudeste do Reino Visigodo (Península Ibérica).
        No dizer de Paul Lamerle, “(...) para ressuscitar a parte morta do Império, desenvolveu um esforço gigantesco que esgotou a parte viva”. (Histoire de Byzance, Coleção "Que Sais-je?" PUF., pág. 46.). Com efeito, as conquistas foram precárias, pois as forças de ocupação demonstraram-se insuficientes e as regiões reconquistadas estavam economicamente arruinadas. Além do mais, as campanhas desviaram recursos humanos e financeiros que deveriam ter sido utilizados contra crescentes ameaças nas fronteiras orientais (a pressão da Pérsia Sassânida foi contida por meio do pagamento de pesados tributo) e balcânicas (ávaros e eslavos realizavam constantes invasões, sendo que os últimos começaram a ser instalados como colonos nos Bálcãs).
A fim de cobrir os gastos com guerras e pagamento de tributos, o governo adotou rigorosa política fiscal, fator de inquietação social, como se evidenciou na Sedição Nika.
Iniciada no Hipódromo de Constantinopla, resultou de múltiplas causas, como a reação contra a tirania fiscal, o descontentamento de monofisistas contra a opressão imperial etc.
O movimento alastrou-se pela cidade e, para sufocá-lo, as tropas imperiais massacraram milhares de pessoas.
Em síntese, “(...) o balanço deste reinado foi decepcionante. A. ameaça persa continuava na fronteira síria; a reconquista do Ocidente foi apenas parcial; os esforços de romanização pouco sucesso tiveram e o latim, língua oficial do Império, só era compreendido por uma minoria”. (ARONDEL, M. e outros, op. cit., pág. 152)
  
"Os Bárbaros contemplavam com assombro os vestíbulos, as salas imensas e os gigantes da guarda. Viam escudos de ouro, lanças rutilantes de ouro, capacetes de ouro, penachos escarlates (...) Contemplavam as outras maravilhas desta pompa ilustre. Acreditavam que o palácio dos Romanos era um outro céu (...) Quando a cortina foi aberta (...) o ávaro levantou os olhos para o César, cuja fronte era cingida por faiscante diadema sagrado. Três vezes ajoelhou-se, prosternou-se, adorou o Imperador e permaneceu como rosto junto ao chão."
(Flávio Corippus [530-585], De Laudibus Justini. Citado por GENICOT, L. e HOUSSIAU, P., op. cit., págs. 42 e 44.)

A Cosmogonia Egípcia




Cosmogonia é o termo utilizado para determinar uma ou mais teorias sobre a formação do nosso universo. Actualmente, não existem muitas dúvidas acerca do principal autor dessa "melodia secreta"- a energia, no entanto há cerca de 6000 anos atrás o homem necessitou de uma explicação para o inexplicável, para aquilo que não se conseguia explicar com simples palavras e simples actores. E no entanto, aquela que mais fez foi sem sombra de dúvidas a mais complexa de todas - a Natureza, nela se escondiam as bases da criação.

Para os Antigos Egípcios, que depressa iniciaram as suas bases cosmogónicas nos primórdios da sua civilização, a natureza era uma fonte rica em personagens mistificadas e adoradas. As tribos nómadas que durante o período pré-histórico e pré-dinástico (cerca de 4000 anos antes de Cristo) dominaram as planícies e oásis no actual Saara, construíram as fundações para aquilo que seria uma das cosmogonias mais espantosas do género humano. Essas ideias cosmogónicas representam o primeiro aspecto da civilização egípcia a chegar até nós. Graças a elas o clero1 pode explicar a criação do mundo e do cosmos cuja visão da época dava conta de duas forças antagónicas em constante luta: a Ordem e o Caos.

Paletas de Narmer – prova da Unificação do Alto e Baixo Egipto.

Ao longo de centenas de anos, as diferentes tribos que viviam naquilo que ainda não era o Egipto, aglomeram-se ao longo de um rio fértil - o Nilo, formando deste modo tribos maiores e mais complexas, com esta complexidade surgiram as primeiras dificuldades em unir as diferentes crenças. Mas estes diferentes dogmas viriam a criar apenas um só com a unificação do Alto e Baixo Egipto (última divisão) cerca de 3000 a.C. pelo rei Narmer (alguns Egiptólogos defendem que outro rei, o rei escorpião, iniciou essa unificação).
Nesse último dogma, os sacerdotes tiveram a rude tarefa de agradar a todas as tribos unificadas. É no entanto evidente que não houve passividade em tal acto, surgindo diversas guerras internas que duraram todo o período da 0 Dinastia.
Mas qual a relação com a astronomia?
Existe evidentemente uma relação directa entre os conceitos cosmogónicos e as concepções do cosmos para os antigos egípcios. A arqueo-astronomia é hoje uma ciência sobejamente estudada, no entanto ainda permanecem centenas de mistérios por resolver. A Astronomia egípcia – Cosmo-Egiptologia - não é excepção à regra, e é necessário para todo o estudioso desta ciência saber os conceitos religiosos que levaram ao conhecimento do cosmos.
Voltando à historia em si…
Desde o período pré-histórico os egípcios olharam para os céus diurnos e nocturnos, cedo aperceberam-se da periodicidade de certos corpos celestes, como é o nascer e ocaso do Sol. Para além destes fenómenos naturais de que voltaremos a falar ao longo das próximas semanas, é importante relacionar estes fenómenos com a própria natureza envolvente, isto é, relacionar determinado fenómeno natural com poderes sobrenaturais dos animais. Assim sendo, um dos animais mais frequente dos céus egípcios – o falcão, tornou-se um dos maiores deuses do panteão Egípcio.
Apesar de aceite por todas as diferentes tribos, o deus falcão Horus – deus do bem e protector do Egipto unificado, é frequentemente confundido e inter-conectado com outros aspectos. Horus identifica-se sobre vários aspectos:
·         Identificação de origem solar com o falcão "senhor dos céus", filho de Hathor (relacionada com Ísis) que surge como criadora.
·         Identificação de origem Osiriana "filho de Ísis" e Osíris, nascida da morte do seu pai, surge aqui como ponto de união a pequena e a grande Eneida de Heliópolis.
·         Identificação com os deuses da Eneida mediana, o Horus irmão de Ísis e Osíris, concebido de forma mágica quando seus pais se encontravam no seio materno de Nut.
·         Identificação de Horus com o rei.


Todas as figuras dos distintos deuses Horus têm uma iconografia similar, tendo por vezes aspectos estranhos, mas existindo sobre forma mais comum como um falcão ou um homem de cabeça de falcão com o disco solar (Horajty) sobre a cabeça ou a coroa dupla2. Existem também outros deuses que apesar de não possuírem uma relação directa com Horus são representados como um falcão, chegando em alguns casos a ter alguns atributos de Horus. A sua caracterização carece de rigidez dependendo da versão e da passagem de textos que se consulta, como também da época e do lugar.
Apesar de Horus ser um deus adorado em diferentes centros religiosos que se edificaram ao longo das primeiras dinastias, essa versão de um deus único não explicava a complexidade das leis do Maat (a ordem cósmica), surgindo no reinado do faraó Unas (2355 a 2325 a. C. – V Dinastia) para resposta a esse dilema, um complexo conjunto de textos, denominados de "Textos das Pirâmides".
Descobertos em 1881 em Saqqara, os "Textos das Pirâmides" despertaram a curiosidade dos académicos do mundo inteiro, sendo Gaston Maspero o primeiro a tentar decifrar a sua lógica. A primeira publicação é da autoria de K. Sethe, Die altagyptischen pyramidentexte, 4 volumes, Leipzig, 1908-1922.
Os textos das pirâmides fazem parte de uma colecção de textos religiosos gravados nas paredes das pirâmides a partir da V dinastia. Estes textos constituíam rituais fúnebres, fórmulas mágicas e cerimónias religiosas para facilitar ao faraó a sua longa caminhada pela morte até a vida no Além, isto é, para aquilo que os Egípcios acreditavam ser o Além – as Estrelas. As ideias cosmogónicas representadas nas paredes das pirâmides datam do início da ideologia da civilização egípcia, havendo passagens que se assemelham em parte a Estelas da I Dinastia, isto demonstra-nos existir, já naquele tempo, um sistema religioso complexo, existente antes mesmo dos textos serem reescritos no interior das pirâmides.
Nestes textos está particularmente bem patente uma ordem lógica da cosmogonia em relação contínua com a astronomia. Na época, Heliópolis era um dos centros religiosos mais importantes, os restantes centros eram: Hermanópolis, Menfis e Tebas, todos eles com sua própria cosmogonia.
A datação das suas cosmogonias são incertas, no entanto os primeiros passos foram dados no pré-dinástico. Estes estão ligados entre eles por princípios fundamentais no "Oceano Primordial" - o Nun, de onde saiu o poder da vida, aquilo que para nós se pode assemelhar ao nosso Universo antes do suposto "Big Bang":
·         Aqui existe um paralelismo estreito com o rio Nilo. Os habitantes do Delta entendiam o Cosmos como um espaço limitado, a vida fluía e o renascimento era periódico como as cheias do rio Nilo;
·         Outra ligação era a "Colina Primogénita", local onde se origina a vida periodicamente devido as cheias do Nilo;
·         A terceira ligação era o Sol, como entidade de poder que provoca o renascimento.

As lutas contínuas entre os diferentes centros religiosos, em particular entre o deus Seth (Nagana) e Horus (Hieracompolis) levaram a que Heliópolis se torna-se o centro religioso mais poderoso do antigo Egipto, nele se prestava o culto ao deus Rá e posteriormente a Horus:
·         A existência na época pré-dinástica de diferentes divindades com cabeça de falcão demonstra a importância dada pelos egípcios às observações do céu e consequentemente ao que por lá voa;
·         O culto de Horus sobre as suas diversas formas foi-se assimilando ao longo da evolução dos conceitos cosmogónicos a partir da II dinastia, assim, Horus transformou-se num dos principais deuses do panteão egípcio a partir de Guerzense o Nagada II.
Heliópolis mostra-nos os passos progressivos para estabelecer uma ordem no Cosmos sem se preocupar com os elementos de desordem em si. Criada em três fases diferentes em redor de um deus: Rá, possui uma simbologia clara e específica para cada uma delas, dando uma sensação de uma estrutura geométrica que se cuida de entrelaçar elementos e divindades do sul e do norte (Seth e Osíris).

A lenda de Heliópolis - ordem cosmogónica.

Assim sendo, a cosmogonia inicial foi:
·         Rá – Deus solar e criador. O grande deus Egípcio e senhor do Maat, a Harmonia Universal. Tríada de Heliópolis com – Atum (Sol do anoitecer), Rá (Sol do meio-dia) e Khepri (Sol da manhã). Aparece pela primeira vez associado ao Deus-Faraó na II dinastia - Nebra (2800 a.C.), e a três nomes da IV dinastia – Didufri, Kefren e Mikerinos, estes intitulam-se filhos de Rá, um dos apelidos clássicos dos faraós a partir da V dinastia.
·         Geb – Deus da Terra. No Egito o céu é um fator feminino, a terra um factor masculino. Na Origem Geb e Nut encontram-se estreitamente unidos. Pedem a Shou (a Atmosfera) que os separe, sobre ordem de Rê. Geb é representado como um homem dominado por Nut.
·         Nut – Deusa do céu estrelado, não se quer unir com Geb, Nut é representada como uma mulher atravessando o hemisfério. Nut é também a mãe do Sol, que decresce antes de ser engolido por Ela e renasce todas as manhãs.
·         Este casal constitui o segundo casal primordial, depois de Shou (o Ar / Fogo) e Tefnou (a Água).


Para além dos "Textos das Pirâmides", surgiram vários outras fontes de conhecimentos das suas relações com o cosmos, o "Livro dos Mortos" é o fac-símile de maior importância para completar a nossa compreensão.


1 Castel E., Los Sacerdotes en el Antigo Egipto, Madrid 1998.

2 Coroa personificando o Alto e o Baixo Egipto.


Bibliografia:
·         R.M & R. Hagen, Egipto, Tashen, 2003
·         F. Daumas, O Egipto
·         M. Philibert, Dic. Des Mythologies, Maxi-poches, 1998
·         J. Christian, La tradition primordiale de l’Égipte ancienne, Pochet.
·         J. Christian, Poder e Sabedoria no antigo Egipto, Pregaminho,
·         W. Pleyte, Chapitres Supplémentaires du livre des morts. Leiden, 1881.
·         E. a. Wallis Budge, The Chapter of coming Forth by day, 1910.
·         E. Caltel, La Cosmogonia y la Eneada Heliopolitana, Beade nº 4-5
·         Textos das Pirâmides
·         M. H. Trindade Lopes, Um olhar sobre o cosmos egípcio. Gazeta de Antropologia, 1989(?)
·         M. H. Trindade Lopes, O livro dos mortos do antigo Egipto. Asirio & Alvim.
·         A. Erman & H. Ranke, La civilisation égyptienne, Payot, 1994 

terça-feira, 7 de agosto de 2012

A arte no Egito Antigo na Mesopotâmia



Ao longo do rio Nilo e principalmente na região norte -- o Delta - ; e na região sul dos rios Eufrates e Tigre, desenvolveram-se as primeiras civilizações. No Egito desenvolveu-se um povo com uma cultura bastante peculiar, pois na maior parte de sua história manteve pouco contato com outras civilizações. Na mesopotâmia desenvolveram diversas civilizações e portanto podemos encontrar uma manifestação cultural um pouco mais diversificada.

No entanto não espere encontrar grandes diferenças, pois a cultura dos povos da Antigüidade Oriental foi caracterizada pelo pragmatismo.

O Pragmatismo

Consideramos uma cultura como pragmática quando o comportamento , a produção intelectual ou artística de um povo é determinada por sua utilidade. Os homens dessas civilizações possuíam uma mentalidade voltada exclusivamente voltada para a praticidade e, do ponto de vista artístico, realizaram obras que pudessem ter utilidade.

Essa utilidade não é necessariamente material, pode ser ideológica, política ou religiosa.

Por exemplo: Os arquitetos que projetaram os grandes palácios e templos não pretendiam a fama, ou mostrar que eram mais engenhosos que outros. A dimensão do palácio, a altura de uma porta, possuía uma finalidade: mostrar àqueles que se aproximavam a grandiosidade do poder, ou seja, perto de um palácio ou templo o homem sente-se pequeno.

Mesmo a produção de objetos de luxo -- braceletes, colares, ou vestimentas com tecidos finos -- serviam para a distinção social e ao mesmo tempo utilizavam-se de referências religiosas ou militares, ou seja, possuíam uma utilidade ideológica.

Escultura

A grandiosidade foi a característica marcante na arquitetura de egípcios e mesopotâmicos, refletindo a força do Estado Teocrático. As principais obras foram Palácios e Templos, que representavam o poder da elite dessas duas regiões: a nobreza e os sacerdotes. No Egito destaca-se ainda a construção de túmulos, uma vez que os egípcios acreditavam na vida após a morte, e por isso os faraós e os membros da elite eram enterrados em grandes túmulos, levando consigo vários objetos e inclusive serviçais para a nova vida.

Nesse contexto é que encontramos as pirâmides, construções monumentais que atraem e fascinam qualquer indivíduo até hoje, inclusive pelo misticismo que as envolvem. Para a maioria das pessoas falar em Egito é pensar em pirâmides.



Qual seria sua reação se um amigo lhe dissesse:

Passei uma semana de férias no Egito, mas não fui conhecer as pirâmides.

Parece algo impossível !

Apesar dessa fascinação é bom lembrar-mos que as pirâmides serviram de túmulos para alguns faraós. Poucos. A construção de pirâmides no Egito foi uma exceção em sua longa história. Como os faraós eram enterrados com grande riqueza, as pirâmides passaram a ser alvo de ladrões, fazendo com que fosse abandonada a idéia de novas construções.

A partir de então, foram construídos os hipogeus, túmulos subterrâneos, cobertos pela terra. As grandes obras foram construídas com pedras, o que em parte explica sua longa duração.

Na Mesopotâmia destaca-se a construção de Zigurates, grandiosos templos, na forma de sacadas e com escadarias nas laterais. Nos zigurates ou ao seu redor desenvolvia-se a atividade comercial.

Poucas obras da arquitetura mesopotâmica sobreviveram ao tempo, ou por que na sua maioria eram construídas com tijolos de barro, ou devido as inúmeras guerras vividas pela região. As principais obras sobreviventes são de origem Persa.

A escultura

A escultura egipcia pretendeu obter a eternização do homem. A estatuária desenvolveu um processo de representação que pudesse preservar a imagem do Faraó ou de nobres importantes após a morte. Essa tendência ao realismo na forma em parte se deve a crença na vida após a morte. As obras mais importantes conhecidas são os bustos da rainha Nefertite, considerada uma das mulheres mais belas da história universal. Porém não foi sua beleza que inspirou os artístas da época, mas sua realeza.

As principais estátuas da região da mesopotâmia representam homens em pé, e são chamadas de "oradores", onde destacam-se a face e principalmente os olhos. No entanto, os relevos foram a principal expressão artística da região, não só pelas carcterísticas artísticas, mas para a compreensão da história e da religiosidade dos povos.

A escultura

A ourivesaria egípcia utilizou-se principalmente do ouro, prata e pedras. Os materiais produzidos eram utilizados por elementos da corte e possuíam a função de talismãs. Os templos e túmulos também eram decorados com pedras preciosas e objetos de ouro com inscrições.

Na mesopotâmia a ourivesaria era uma das atividades artísticas mais importantes e apesar das guerras e dos constantes saques que ocorreram na região, tesouros de alguns reis foram preservados.

Estatuetas de cobre, colares e braceletes, assim como utensílios trabalhados em ouro e prata com incrustações de pedras eram muito comuns, e com estilos variados dada a diversidade de povos que ocupou a região. As obras persas refletem ainda certa influência da cultura grega, dado o naturalismo que possuem. 

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Idade Média: Nascimento do Ocidente


Livro: Idade Média: Nascimento do Ocidente. Hilário franco Jr.

Prefácio

Quando lançamos a primeira edição deste livro, em 1986, foi como resposta ao interesse que começava a haver no Brasil pela história da Idade Média, ainda que com muitas décadas de atraso em relação à Europa e algumas décadas em relação aos Estados Unidos, à Argentina e mesmo ao Japão. Aquele novo interesse decorria da crescente compreensão da importância que teve o período medieval na formação da civilização ocidental, da qual nosso país faz parte. Assim, revelava-se estimulante, ainda que problemático, elaborar uma obra adequada à nossa realidade acadêmica, sem tradição medievalística e distanciada dos grandes centros historiográficos especializados naquela época. De fato, como num número limitado de páginas (decorrência das condições de nosso mercado editorial) tratar de assunto tão rico e complexo? Naturalmente, não se poderia dar por conhecidos todos os fatos importantes (o que seria desconsiderar a situação em que o aluno chega à universidade), centrando-se apenas na sua análise. Mas tampouco se deveria fazer uma mera descrição dos principais eventos da Idade Média, o que fugiria àquilo que nos parece a razão de ser da História: a compreensão do passado para se lançar luz sobre a compreensão do presente. Vencidas as hesitações, definido o espírito do livro, partimos para sua elaboração. Hoje o relançamos, revisto e ampliado, graças a uma dupla constatação. De um lado, o interesse dos brasileiros pela Idade Média não foi um mero modismo. Nesses últimos anos ele consolidou-se, atraiu um público fiel aos cursos e palestras sobre o tema, permitiu a tradução de diversas obras importantes sobre o assunto, gerou mesmo uma certa produção nacional no setor. De outro lado, vários anos e várias edições depois, parece-nos que a fórmula adotada por este livro mereceu o interesse dos colegas e dos estudantes. Por essa razão, ela foi mantida nesta nova edição, na qual realizamos pequenas correções e muitos acréscimos, inclusive de todo um capítulo.

A intenção do livro continua, portanto, a ser a da busca de equilíbrio entre as informações e suas interpretações. Claro que a escolha tanto de umas quanto de outras será sempre discutível. Mas ela não seguiu apenas preferências pessoais do autor: o critério básico foi acompanhar — nos limites de um pequeno manual — as tendências c as conquistas mais recentes da historiografia especializada. Não deixamos, porém, de apontar algumas questões polêmicas ou tópicos a serem ainda explorados pelo medievalistas. Tais indicações, apesar de rápidas, ficam como sugestões para eventuais pesquisas futuras por parte do leitor. A concepção do livro não segue a estrutura tradicional, cronológica, e sim temático-cronológica. Isto é, cada grande tema (economia, política, cultura etc.) corresponde a um capítulo, dentro do qual o assunto é desenvolvido cronologicamente. Contudo, é natural, todo capítulo faz referências freqüentes a assuntos tratados em outras partes. Desta forma, a relativa autonomia de cada capítulo não prejudica o fundamental, o sentido da globalidade. Na verdade, qualquer que fosse a arquitetura adotada por este trabalho, ela implicaria um fracionamento do objeto de estudo, o que é um recurso inevitável de análise. Para que se perca menos a totalidade histórica medieval, é recomendável a leitura completa do livro, mesmo quando o interesse imediato for por um assunto específico. Somente de posse de todos os fatos e análises é que se poderá ver melhor as articulações profundas, as linhas evolutivas básicas da Idade Média. Buscando aliviar o texto de definições que pareçam ser redundantes a muitos leitores, mas sem esquecer que elas podem ser imprescindíveis a muitos outros, optamos por assinalar tais palavras (na sua primeira aparição dentro de um item) com um asterisco. Este remete ao Apêndice 1, colocado no fim do livro, um glossário que também pode ser usado independentemente do texto, funcionando como uma espécie de minidicionário técnico, que esperamos possa ser útil mesmo a quem já tenha algumas noções de história medieval. Também em apêndice, foram incluídos quadros que, conforme a necessidade, desenvolvem ou sintetizam matérias tratadas ao longo da obra. Ainda como instrumento de utilização deste manual, incluímos, além do índice geral dos capítulos, um índice de tabelas, mapas e figuras, um outro cronológico e por fim um temático. Se se deseja conhecer, por exemplo, a economia medieval e sua evolução, basta recorrer ao capítulo correspondente. Mas se se quer, por hipótese, ter uma visão global da Alta Idade Média, deve-se consultar o índice cronológico. Ou, se se quer estudar temas como feudalismo, heresias, França etc, deve-se utilizar o índice temático. Por economia de espaço, e para não dar um tom excessivamente acadêmico a este texto introdutório, suprimimos as tradicionais notas de rodapé. Contudo, não poderíamos deixar de indicar a origem de uma informação pouco divulgada ou de uma interpretação original e/ou polêmica. Para tanto, colocamos entre parênteses um número em negrito que indica a obra, listada na Orientação para pesquisa, seguido de outro número que aponta a página da qual se extraiu aquele dado ou aquela citação. No caso de artigos de revistas especializadas, aparecem três números: o terceiro à página. Como nosso texto fornece apenas um primeiro contato, rápido mas que esperamos sólido, com a história medieval, no final de cada capítulo indicamos dez títulos da Orientação para pesquisa voltados para o assunto em pauta. Aos interessados em aprofundar ainda mais o tema, vêm a seguir outras cinco sugestões bibliográficas, de obras mais técnicas, mais especializadas, versando sobre determinados aspectos do capítulo em questão. O mesmo procedimento, com menor número de indicações, foi adotado também na Introdução, na Conclusão e nos Apêndices.
Introdução

O (pré)conceito de Idade Média

Se numa conversa com homens medievais utilizássemos a expressão “Idade Média”, eles não teriam idéia do que estaríamos falando. Como todos os homens de todos os períodos históricos, eles viam-se na época contemporânea. De fato, falarmos em Idade Antiga ou Média representa uma rotulação a posteriori, uma satisfação da necessidade de se dar nome aos momentos passados. No caso do que chamamos de Idade Média, foi o século XVI que elaborou tal conceito. Ou melhor, tal preconceito, pois o termo expressava um desprezo indisfarçado em relação aos séculos localizados entre a Antigüidade Clássica e o próprio século XVI. Este se via como o renascimento da civilização greco-latina, e portanto tudo que estivera entre aqueles picos de criatividade artístico-literária (de seu próprio ponto de vista, é claro) não passara de um hiato, de um intervalo. Logo, de um tempo intermediário, de uma idade média.

A Idade Média para os renascentistas e iluministas

Admirador dos clássicos, o italiano Francesco Petrarca (13041374) já se referira ao período anterior como de tenebrae: nascia o mito historiográfico da Idade das Trevas. Em 1469, o bispo Giovanni Andrea, bibliotecário papal, falava em media tempestas, literalmente “tempo médio”, mas também com o sentido figurado de “flagelo”, “ruína”. A idéia enraizou-se quando em meados do século XVI Giorgio Vasari, numa obra biográfica de grandes artistas do seu tempo, popularizou o termo “Renascimento”. Assim, por contraste, difundiram-se em relação ao período anterior as expressões media aetas, media antiquitas e media tempora. De qualquer forma, o critério era inicialmente filológico. Opunha-se o século XVI, que buscava na sua produção literária utilizar o latim nos moldes clássicos, aos séculos anteriores, caracterizados por um latim “bárbaro”. A arte medieval, por fugir aos padrões clássicos, também era vista como grosseira, daí o grande pintor Rafael Sanzio (1483-1520) chamá-la de “gótica”, termo então sinônimo de “bárbara”. Na mesma linha, François Rabelais (1483-1553) falava da Idade Média como a “espessa noite gótica”. No século XVII, foi ainda com aquele sentido filológico que passou a prevalecer a expressão medium aevum, usada pelo francês Charles de Fresne Du Cange em 1678 (13). Mas o sucesso do termo veio com o manual escolar do alemão Christoph Keller (1638-1707, conhecido também pela latinização de seu nome, Cellarius), publicado cm 1688 c intitulado Historia Medii Aevi a temporibus Constantini Magni ad Constantinopolim a Turcis captam deducta. Esse livro completava outros dois do autor, um dedicado aos tempos “antigos” e outro aos “modernos”. Portanto, o sentido básico mantinha-se renascentista: a “Idade Média” teria sido uma interrupção no progresso humano, inaugurado pelos gregos e romanos e retomado pelos homens do século XVI. Ou seja, também para o século XVII os tempos “medievais” teriam sido de barbárie, ignorância e superstição. Os protestantes criticavam-nos como época de supremacia da Igreja Católica. Os homens ligados às poderosas monarquias absolutistas lamentavam aquele período de reis fracos, de fragmentação política. Os burgueses capitalistas desprezavam tais séculos de limitada atividade comercial. Os intelectuais racionalistas deploravam aquela cultura muito ligada a valores espirituais. O século XVIII, antiaristocrático e anticlerical, acentuou o menosprezo à Idade Média, vista como momento áureo da nobreza e do clero. A filosofia da época, chamada de iluminista por se guiar pela luz da Razão, censurava sobretudo a forte religiosidade medieval, o pouco apego da Idade Média a um estrito racionalismo e o peso político de que a Igreja então desfrutara. Sintetizando tais críticas, Denis Diderot (1713-1784) afirmava que “sem religião seríamos um pouco mais felizes”, Para o marquês de Condorcet (1743-1794), a humanidade sempre marchou em direção ao progresso, com exceção do período no qual predominou o cristianismo, isto é, a Idade Média. Para Voltaire (1694-1778), os papas eram símbolos do fanatismo e do atraso daquela fase histórica, por isso afirmava, irônico, que “é uma prova da divindade de seus caracteres terem subsistido a tantos crimes”. A posição daquele pensador sobre a Idade Média poderia ser sintetizada pelo tratamento que dispensava à Igreja: “a Infame”.

A Idade Média para os românticos

O Romantismo da primeira metade do século XIX inverteu, contudo, o preconceito em relação à Idade Média. O ponto de partida foi a questão da identidade nacional, que ganhara forte significado com a Revolução Francesa. As conquistas de Napoleão tinham alimentado o fenômeno, pois a pretensão do imperador francês de reunir a Europa sob uma única direção despertou em cada região dominada ou ameaçada uma valorização de suas especificidades, de sua personalidade nacional, de sua história, enfim. Ao mesmo tempo, tudo isso punha em xeque a validade do racionalismo, tão exaltado pela centúria anterior, e que levara a Europa àquele contexto de conturbações, revoluções e guerras. A nostalgia romântica pela Idade Média fazia com que ela fosse considerada o momento de origem das nacionalidades, satisfazendo assim os novos sentimentos do século XIX. Vista como época de fé, autoridade e tradição, a Idade Média oferecia um remédio à insegurança e aos problemas decorrentes de um culto exagerado ao cientificismo. Vista como fase histórica das liberdades, das imunidades e dos privilégios, reforçava o liberalismo burguês vitorioso no século XIX. Dessa maneira, o equilíbrio e a harmonia na literatura e nas artes, que o Renascimento e o Classicismo do século XVII tinham buscado, cedia lugar à paixão, à exuberância e à vitalidade encontráveis na Idade Média. A verdade procurada através do raciocínio, que guiara o Iluminismo do século XVIII, cedia lugar à valorização dos sentidos, do instinto, dos sonhos, das recordações.

Abundam então obras de ambientação, inspiração ou temática medievais, como Fausto (1808 e 1832) de Goethe, O corcunda de Notre Dame (1831) de Victor Hugo, os vários romances históricos de Walter Scott (1771-1832), dentre eles Ivanhoé e Contos dos cruzados, diversas composições de Wagner, como Tristão e lsolda (1859) e Parsifal (1882). Essa Idade Média dos escritores e músicos românticos era tão preconceituosa quanto a dos renascentistas e dos iluministas. Para estes dois, ela teria sido uma época negra, a ser relegada da memória histórica. Para aqueles, um período esplêndido, um dos grandes momentos da trajetória humana, algo a ser imitado, prolongado. Tal atração fez o Romantismo restaurar inúmeros monumentos medievais e construir palácios e igrejas neogóticas, mas inventando detalhes, modificando concepções, criando a sua Idade Média. A historiografia também não ficou imune a isso, como mostra o caso de Thomas Carlyle, que escrevendo em 1841 afirmava ter sido a civilização feudal “a coisa mais elevada” que a Europa tinha produzido. Mais útil para futuros estudos, apesar de suas imperfeições, foi a organização de grandes coleções documentais, como a Monumenta alemã (7), a Patrologia francesa (8), os Rolls Series ingleses (9), todas elas produto da paixão do século XIX pela época medieval. De qualquer forma, a Idade Média permanecia incompreendida. Ela ainda oscilava entre o pessimismo renascentista/iluminista e a exaltação romântica. Aos preconceitos anteriores juntava-se o da idealização, já antecipado por Gotthold Lessing (1729-1781): “Noite da Idade Média, que seja! Mas era uma noite resplandecente de estrelas”. A melhor síntese daquela oscilação está no maior historiador da época, Jules Michelet (1798-1874). Na sua Histoire de France, ele reservou seis volumes à Idade Média (1833-1844), definindo-a como “aquilo que amamos, aquilo que nos amamentou quando pequenos, aquilo que foi nosso pai e nossa mãe, aquilo que nos cantava tão docemente no berço”. Mas nas reedições de 1845-1855 ele mostra uma Idade Média negativa, reduzida a longo preâmbulo ao século XVI, mudança que resultava das dificuldades do presente histórico da França e do próprio Michelet.

A Idade Média para o século XX

Finalmente, passou-se a tentar ver a Idade Média como os olhos dela própria, não com os daqueles que viveram ou vivem noutro momento. Entendeu-se que a função do historiador é compreender, não a de julgar o passado. Logo, o único referencial possível para se ver a Idade Média é a própria Idade Média. Com base nessa postura, e elaborando, para concretizá-la, inúmeras novas metodologias e técnicas, a historiografia medievalística deu um enorme salto qualitativo. Sem risco de exagerar, pode-se dizer que o medievalismo se tornou uma espécie de carro-chefe da historiografia contemporânea, ao propor temas, experimentar métodos, rever conceitos, dialogar intimamente com outras ciências humanas. Isso não apenas deu um grande prestígio à produção medievalística nos meios cultos como popularizou a Idade Média diante de um público mais vasto e mais consciente do que o do século XIX. O que não significa que a imagem negativa da Idade Média tenha desaparecido. Não é raro encontrarmos pessoas sem conhecimento histórico ainda qualificando de “medieval” algo que elas reprovam. Pior, mesmo certos eruditos não conseguem escapar ao enraizamento do sentido depreciativo atribuído desde o século XVI à Idade Média. Ao analisar as dificuldades do fim do século XX, o francês Alain Minc falou mesmo em uma “Nova Idade Média”. No entanto, de forma geral, os tradicionais juízos de valor sobre aquele período parecem recuar. Isso não quer dizer, é claro, que os historiadores do século XX tenham resgatado a “verdadeira” Idade Média. Ao examinar qualquer período do passado, o estudioso necessariamente trabalha com restos, com fragmentos — as fontes primárias, no jargão dos historiadores — desse passado, que portanto jamais poderá ser integralmente reconstituído. Ademais, o olhar que o historiador lança sobre o passado não pode deixar de ser um olhar influenciado pelo seu

presente. Na célebre formulação de Lucien Febvre, feita em 1942 no seu Le problème de l'incroyance au XVI siècle. La religion de Rabelais, “a História é filha de seu tempo”, por isso cada época tem “sua Grécia, sua Idade Média e seu Renascimento”. De fato, a historiografia é um produto cultural que, como qualquer outro, resulta de um complexo conjunto de condições materiais e psicológicas do ambiente individual e coletivo que a vê nascer. Daí a história política ter-se desenvolvido nas cidades-Estado gregas, a história de hagiografias* nos mosteiros medievais, a história dinástica e nacional nas cortes monárquicas modernas, a história econômica no ambiente da industrialização dos séculos XIX-XX, a história das mentalidades no contexto das inquietações e esperanças da segunda metade do século XX. Logo, apesar de neste momento fazermos uma história medieval baseada em maior disponibilidade de fontes e em técnicas mais rigorosas de interpretação dessas fontes, não podemos afirmar que a leitura da Idade Média realizada pelo século XX é a definitiva. Feitas essas ressalvas metodológicas obrigatórias, o que devemos entender por Idade Média, pelo menos no atual momento historiográfico? Trata-se de um período da história européia de cerca de um milênio, ainda que suas balizas cronológicas continuem sendo discutíveis. Seguindo uma perspectiva muito particularista (às vezes política, às vezes religiosa, às vezes econômica), já se falou, dentre outras datas, em 330 (reconhecimento da liberdade de culto aos cristãos), em 392 (oficialização do cristianismo), em 476 (deposição do último imperador romano) e em 698 (conquista muçulmana de Cartago) como o ponto de partida da Idade Média. Para seu término, já se pensou em 1453 (queda de Constantinopla e fim da Guerra dos Cem Anos), 1492 (descoberta da América) e 3517 (início da Reforma Protestante). Sendo a História um processo, naturalmente se deve renunciar à busca de um fato específico que teria inaugurado ou encerrado um determinado período. Mesmo assim os problemas permanecem, pois não há unanimidade sequer quanto ao século em que se deu a passagem da Antigüidade para a Idade Média. Tampouco há acordo no que diz respeito à transição dela para a Modernidade. Mais ainda, apesar da existência de estruturas básicas ao longo daquele milênio, não se pode pensar, é claro, num imobilismo. Passou-se então a subdividir a história medieval em fases que apresentaram certa unidade interna. Mas também aqui não chega a haver consenso entre os historiadores. A periodização que propomos a seguir não é a única aceitável, ainda que nos pareça mais adequada à maneira como montamos este livro, isto é, buscando a compreensão das estruturas (e não dos eventos) medievais. Se não, vejamos. O período que se estendeu de princípios do século IV a meados do século VIII sem dúvida apresenta uma feição própria, não mais “antiga” e ainda não claramente “medieval”. Apesar disso, talvez seja melhor chamá-la de Primeira Idade Média do que usar o velho rótulo de Antigüidade Tardia, pois nela teve início a convivência e a lenta interpenetração dos três elementos históricos que comporiam todo o período medieval. Elementos que, por isso, chamamos de Fundamentos da Idade Média: herança romana clássica, herança germânica, cristianismo. A participação do primeiro deles na formação da Idade Média deu-se sobretudo após a profunda crise do século III, quando o Império Romano tentou a sobrevivência por meio do estabelecimento de novas estruturas, que não impediram (e algumas até mesmo aceleraram) sua decadência, mas que permaneceriam vigentes por séculos (Apêndice 2).

Foi o caso, por exemplo, do caráter sagrado da monarquia, da aceitação de germanos no exército imperial, da petrificação da hierarquia social, do crescente fiscalismo sobre o campo, do desenvolvimento de uma nova espiritualidade que possibilitou o sucesso cristão. Nesse mundo em transformação, a penetração germânica intensificou as tendências estruturais anteriores, mas sem alterá-las. Foi o caso da pluralidade política substituindo a unidade romana, da concepção de obrigações recíprocas entre chefe e guerreiros, do deslocamento para o norte do eixo de gravidade do Ocidente*, que perdia seu caráter mediterrânico. O cristianismo, por sua vez, foi o elemento que possibilitou a articulação entre romanos e germanos, o elemento que ao fazer a síntese daquelas duas sociedades forjou a unidade espiritual, essencial para a civilização medieval. Isso foi possível pelo próprio caráter da Igreja nos seus primeiros tempos. De um lado, ela negava aspectos importantes da civilização romana, como a divindade do imperador, a hierarquia social, o militarismo. De outro, ela era um prolongamento da romanidade, com seu caráter universalista, com o cristianismo transformado em religião do Estado, com o latim que por intermédio da evangelização foi levado a regiões antes inatingidas. Completada essa síntese, a Europa católica entrou em outra fase, a Alta Idade Média (meados do século VIII-fins do X). Foi então que se atingiu, ilusoriamente, uma nova unidade política com Carlos Magno, mas sem interromper as fortes e profundas tendências centrífugas que levariam posteriormente à fragmentação feudal. Contudo, para se alcançar essa efêmera unidade, a dinastia Carolíngia precisou ser legitimada pela Igreja, que pelo seu poder sagrado considerava-se a única e verdadeira herdeira do Império Romano. Em contrapartida, os soberanos Carolíngios entregaram um vasto bloco territorial italiano à Igreja, que desta forma se corporificou e ganhou condições de se tornar uma potência política atuante. Ademais, dando força de lei ao antigo costume do pagamento do dízimo à Igreja, os Carolíngios vincularam-na definitivamente à economia agrária da época. Graças a esse temporário encontro de interesses entre a demográfica. Iniciou-se então a expansão territorial cristã sobre regiões pagãs Igreja e o Império, ocorreu uma certa recuperação econômica e o início de uma retomada — que se estenderia pelos séculos seguintes — reformulando o mapa civilizacional da Europa*. Por fim, como resultado disso tudo, deu-se a transformação do latim nos idiomas neolatinos, surgindo em fins do século X os primeiros textos literários em língua vulgar. Mas a fase terminaria em crise, devido às contradições do Estado Carolíngio e a uma nova onda de invasões (vikings, muçulmanas, magiares). A Idade Média Central (séculos XI-XIII) que então começou foi, grosso modo, a época do feudalismo, cuja montagem representou uma resposta à crise geral do século X. De fato, utilizando material histórico que vinha desde o século IV, aquela sociedade nasceu por volta do ano 1000, tendo conhecido seu período clássico entre os séculos XI e XIII. Assim reorganizada, a sociedade cristã ocidental conheceu uma forte expansão populacional c uma conseqüente expansão territorial, da qual as Cruzadas são a face mais conhecida. Graças à maior procura de mercadorias e à maior disponibilidade de mão-de-obra, a economia ocidental foi revigorada e diversificada. A produção cultural acompanhou essa tendência nas artes, na literatura, no ensino, na filosofia, nas ciências. Aquela foi, portanto, em todos os sentidos, a fase mais rica da Idade Média, daí ter merecido em todos os capítulos deste livro uma maior atenção. Mas aquelas transformações atingiram a própria essência do feudalismo — sociedade fortemente estratificada, fechada, agrária, fragmentada politicamente, dominada culturalmente pela Igreja. De dentro dela, e em concorrência com ela, desenvolveu-se um segmento urbano, mercantil, que buscava outros valores, que expressava e ao mesmo tempo acelerava as mudanças decorrentes das próprias estruturas feudais. Aquela sociedade passava da etapa feudo-clerical* para a feudo-burguesa*, na qual o segundo elemento ia lenta mas firmemente sobrepujando o primeiro: emergiam as cidades, as universidades, a literatura vernácula, a filosofia racionalista, a ciência empírica, as monarquias nacionais. Os conservadores, como Dante Alighieri, lamentavam tais transformações. Inegavelmente caminhava-se para novos tempos. A Baixa Idade Média (século XIV-meados do século XVI) com suas crises e seus rearranjos, representou exatamente o parto daqueles novos tempos, a Modernidade. A crise do século XIV, orgânica, global, foi uma decorrência da vitalidade e da contínua expansão (demográfica, econômica, territorial) dos séculos XI-XIII, o que levara o sistema aos limites possíveis de seu funcionamento. Logo, a recuperação a partir de meados do século XV deu-se em novos moldes, estabeleceu novas estruturas, porém ainda assentadas sobre elementos medievais: o Renascimento (baseado no Renascimento do século XII), os Descobrimentos (continuadores das viagens dos normandos e dos italianos), o Protestantismo (sucessor vitorioso das heresias*), o Absolutismo (consumação da centralização monárquica). Em suma, o ritmo histórico da Idade Média foi se acelerando, e com ele nossos conhecimentos sobre o período. Sua infância e adolescência cobriram boa parte de sua vida (séculos IV-X), no entanto as fontes que temos sobre elas são comparativamente poucas. Sua maturidade (séculos XI-XIII) e senilidade (século XIV-XVI) deixaram, pelo contrário, uma abundante documentação. É essa divisão cronológica que nos guiará ao longo do exame de cada uma das estruturas básicas da Idade Média. Se nos capítulos a seguir dedicamos atenção desigual a cada uma daquelas fases, é porque, grosso modo, acompanhamos inversamente o ritmo histórico diretamente a disponibilidade de fontes e trabalhos sobre elas. c

A Idade Média para os medievais

Mas, enfim, que conceito tinham da “Idade Média” os próprios medievos? Questão difícil de ser respondida, apesar dos progressos metodológicos das últimas décadas. A resposta, mesmo provisória e incompleta, precisaria ser matizada no tempo e no espaço, e ainda considerar pelo menos duas grandes vertentes, a do clero, elaborada a partir de interpretações teológicas, e a dos leigos, presa a concepções antigas, pré-cristãs. Simplificadamente, essa bipolarização quanto à História partia de duas visões distintas quanto ao tempo. A postura pagã, fortemente enraizada na psicologia coletiva*, aceitava a existência de um tempo cíclico, daquilo que se chamou de “mito* do eterno retorno”. Ou seja, as primeiras sociedades só registravam o tempo biologicamente, sem transformá-lo em História, portanto sem consciência de sua irreversibilidade. Isso porque, para elas, viver no real era viver segundo modelos extra-humanos, arquetípicos. Assim, tanto o tempo sagrado (dos rituais) quanto o profano (do cotidiano) só existiam por reproduzir atos ocorridos na origem dos tempos. Daí a importância da festa de Ano-Novo, que era uma retomada do tempo no seu começo, isto é, uma repetição da cosmogonia, com ritos de expulsão de demônios e de doenças. Tal concepção sofreu sua primeira rejeição com o judaísmo, que vê em Iavé não uma divindade criadora de gestos arquetípicos, mas uma personalidade que intervém na História. O cristianismo retornou e desenvolveu essa idéia, enfatizando o caráter linear da História, com seu ponto de partida (Gênese), de inflexão (Natividade) e de chegada (Juízo Final). Portanto, linear mas não ao infinito, pois há um tempo escatológico* — que só Deus conhece — limitando o desenrolar da História, isto é, da passagem humana pela Terra. Contudo, se o cristianismo reinterpretou a História, não pôde deixar de sentir seu peso, inclusive da mentalidade* cíclica, daí a liturgia cristã basear-se na repetição periódica e real de eventos essenciais como Natividade, Paixão e Ressurreição de Jesus: ao participar da reprodução do evento divino, o fiel volta ao tempo em que ele ocorreu. Ou seja, a cristianização das camadas populares não aboliu a teoria cíclica, pelo contrário, influenciou o cristianismo erudito e reforçou certas categorias do pensamento mítico. Em virtude disso, pelo menos até o século XII os medievos não sentiam necessidade de maior precisão no cômputo do tempo, o que expressava e acentuava a falta de um conceito claro sobre sua própria época. De maneira geral, prevalecia o sentimento de viverem em “tempos modernos”, devido à consciência que tinham do passado, dos “tempos antigos”, pré-cristãos. Estava também presente a idéia de que se caminhava para o Fim dos Tempos, não muito distante. Espera difusa, que raramente se concentrou em momentos precisos. Sabemos hoje que os pretendidos “terrores do ano 1000” foram uma criação historiográfica, pois não houve nenhum sentimento especial e generalizado de que o mundo fosse acabar naquele momento. Mas c inegável que a psicologia coletiva* medieval esteve constantemente (ainda que com flutuações de intensidade) preocupada com a proximidade do Apocalipse. Catástrofes naturais ou políticas eram freqüentemente interpretadas como indícios da chegada do Anticristo. Havia uma difundida visão pessimista do presente, porém carregada de esperança no iminente triunfo do Reino de Deus. Nesse sentido, a visão de mundo medieval trazia implícita em si a concepção de um tempus medium, precedendo a Nova Era. Tempo não monolítico, dividido em várias fases. A quantidade e a caracterização delas não eram, contudo, consensuais. A periodização mais comum, ao menos entre o clero, concebia seis fases históricas, de acordo com os dias da Criação. Como no sétimo dia Deus descansou, na sétima fase os homens descansarão no seio de Deus. Assim pensavam muitos, de Santo Agostinho (354-430) e Isidoro de Sevilha (560-636) até Fernão Lopes (1380-1460). Também teve sucesso uma concepção trinitária da História, surgida no século IX com João Escoto Erígena (ca. 830-ca. 880) e que teve seu maior representante no monge cisterciense Joaquim de Fiore (1132-1202). Para este, a Era do Pai ter-se-ia caracterizado pelo temor servil à lei divina, a Era do Filho pela sabedoria, fé e obediência humilde, a do Espírito Santo (que começaria em 1260) pela plenitude do conhecimento, do amor universal e da liberdade espiritual. Qualquer que fosse a divisão temporal adotada, reconhecia-se que o suceder das fases acabaria com a Parusia*, quando a História enquanto tal deixaria de existir.

Bibliografia básica: 2, 4, 17, 67, 98. Bibliografia complementar: M. CARRUTHERS, The book of memory. A study of memory in medieval culture, Cambridge. CUP, 1990; B. GUENÉE, Histoire et culture historique dans l'Occident Médiéval, Paris, Aubier, 1980; E. MITRE. Historiografia y mentalidades históricas en la Europa medieval, Madri, Universidad Complutense, 1982.

Capítulo 1 As estruturas demográficas

O surgimento da Demografia Histórica, há menos de cinco décadas, enriqueceu consideravelmente o arsenal do historiador na sua tarefa de compreensão do passado, e os medievalistas não poderiam, é claro, ficar indiferentes a ela. Apareceram assim vários trabalhos metodológicos sobre as especificidades da demografia medieval e inúmeras monografias sobre as condições populacionais de mosteiros, senhorios*, cidades e mesmo regiões mais amplas. A partir de tais estudos esboçaram-se sínteses parciais, e hoje já vemos com certa clareza as estruturas demográficas medievais. Sem dúvida, a Idade Média estava na etapa que os especialistas chamam de Antigo Regime Demográfico, típico das sociedades agrárias, pré-industriais: alta taxa de natalidade e alta taxa de mortalidade. Em razão disso, a conjugação de certos fatores (estiagens, enchentes, epidemias etc.) por poucos anos seguidos alterava o quadro demográfico ao elevar ainda mais a mortalidade. Ou, pelo contrário, a ausência de eventos daquele tipo rapidamente produzia um saldo populacional positivo. Como Roberto Lopez acertadamente chamou a atenção (70: 120), toda espécie, inclusive a humana, tem tendência natural a se multiplicar, desde que não haja obstáculos externos para isso. Ora, a história demográfica medieval é exatamente a história da presença e da remoção desses obstáculos.

A retração da Primeira Idade Média

Do ponto de vista demográfico, a primeira fase medieval foi um prolongamento da situação do Império Romano, cuja população conhecera um claro recuo desde o século II. Com a crescente desorganização do aparelho estatal romano, foram rareando as importações de gêneros alimentícios que tinham por séculos permitido a existência de uma grande população urbana. As cidades começaram a se esvaziar, cada região tentou passar a produzir tudo aquilo de que necessitasse, Tal fenômeno paradoxalmente aumentou a insegurança, pois bastava uma má colheita para que a mortalidade naquele local rapidamente se elevasse, devido às dificuldades em obter alimentos em outras regiões. Não por acaso, a hagiografia* da época freqüentemente relata milagres alimentares: santo era sobretudo o homem que conseguia alimentos para seus concidadãos. Entrava-se num círculo vicioso, pois “a fraqueza demográfica engendrava a fraqueza dos rendimentos e esta por sua vez engendrava a fraqueza demográfica, reforçando assim a causa da pobreza” (42:138). Contra esta situação, no século V um imperador romano proibiu as moças menores de 14 anos de entrar para o clero, além de pressionar as viúvas a se casarem novamente em cinco anos sob pena de em caso contrário perderem metade dos seus bens. Por seu lado, a penetração e a fixação de germanos em território romano não alteraram significativamente a situação. Cada grupo invasor (franco, ostrogodo, vândalo etc.) tinha em média apenas entre 50.000 e 80.000 pessoas, computados guerreiros, mulheres e crianças. No conjunto, uma estimativa antiga, mas de forma geral ainda aceita, calcula que o total de germanos que se fixaram no império representava somente uns 5% da população romana. Desta forma, não houve um reforço populacional germânico, porque a chegada de algumas poucas dezenas de milhares de bárbaros teve como contrapartida o despovoamento de regiões inteiras diante de seu avanço. Acima de tudo, porém, o recuo demográfico foi produto do recrudescimento de epidemias. Do século III ao V, de malária. Do século VI ao VIII, de varíola conjugada com a mortífera peste. Como a difusão das doenças era acelerada pelo deslocamento de comerciantes e soldados, elas fizeram-se mais presentes no litoral mediterrâneo do que no interior europeu, já então mais isolado em razão da debilidade e depois do desaparecimento do Estado romano. O sul da França e da Itália foi atingido por quinze vagas de peste entre meados do século VI e meados do século VIII, cada uma delas geralmente com alguns anos de duração. Por esse motivo, “a população no Ocidente, e talvez mesmo no Oriente, atingiu nos séculos VII e VIII seu ponto mais baixo desde o Alto Império Romano” (BIRABEN: I, 44).

A relativa recuperação da Alta Idade Média

Foi possivelmente esse completo despovoamento de certas regiões que permitiu a recuperação de outras, ao criar bolsões (os locais desertos) que dificultavam a difusão da peste. De qualquer forma, o que se percebe por meio de indícios esparsos na documentação — de interpretação problemática — indica uma certa retomada demográfica na segunda metade do século VIII. Esse fato talvez esteja ligado à reorganização promovida pelos Carolíngíos, e talvez ajude mesmo a explicar a expansão territorial realizada por Carlos Magno. Contudo, essa recuperação foi desigual no tempo e no espaço. Em muitos locais, em muitos momentos, a fome e a mortalidade continuavam acentuadas. Uma crônica da região do Mosela afirma, em fins do século VIII, que “os homens comiam os excrementos uns dos outros, homens comiam homens, irmãos comiam seus irmãos, as mães comiam seus filhos”. Buscando um certo equilíbrio entre o contingente populacional e os recursos existentes, a sociedade alto-medieval lançava mão de vários expedientes de controle de natalidade. Daí o pequeno número de crianças, apenas 2% da população camponesa. Em parte, isso se devia às práticas anticonceptivas e abortivas, apesar de duramente punidas pela Igreja. Em parte, era resultado da elevada proporção de viúvos e celibatários naquela sociedade. Em parte, decorria do infanticídio, especialmente o feminino, estudado por Emily Coleman (19: 1974, 315-335): para ter menos bocas para alimentar, sacrificavam-se muitos recém-nascidos do sexo feminino, que quando adultos seriam menos produtivos que os masculinos. Apesar de a mortalidade infantil masculina ser maior que a feminina, a taxa de masculinidade (isto é, a proporção homens/mulheres) era alta em muitas explorações agrárias, indicando a eliminação de crianças do sexo feminino. Por outro lado, nas grandes propriedades agrícolas, com melhores condições de sustentar um maior número de pessoas, a taxa de masculinidade era menor, pois aqueles sacrifícios eram menos necessários. Em suma, a recuperação populacional da Alta Idade Média parece ter sido tímida, e logo absorvida pelos problemas decorrentes do fracasso do Império Carolíngio e das invasões de muçulmanos, magiares e sobretudo vikings. Provenientes da Escandinávia, estes últimos aproveitavam-se da grande navegabilidade dos rios europeus para penetrar profundamente em território cristão. Ainda que seja impossível avaliar o impacto demográfico de todas aquelas invasões, parece que não foi desprezível. Além das mortes diretamente provocadas pelos invasores, havia as mortes indiretas, resultantes da destruição das aldeias e campos, e a perda populacional ocasionada pela escravização de cristãos, vendidos em regiões distantes. Os poucos dados numéricos fornecidos pelas fontes não são confiáveis, mas as descrições dos cronistas indicam o alcance dos estragos resultantes das incursões vikings. Um monge da região do Loire afirmava, em meados do século IX, que “a multidão inumerável de normandos não pára de crescer. De todos os lados os cristãos são vítimas de massacres, de pilhagens, de devastações, de incêndios”. Escrevendo meio século depois, um monge parisiense lamentava a aproximação dos “cruéis pagãos [que] devastam o país, massacram os habitantes, capturam os camponeses, acorrentam-nos e enviam-nos além-mar”.

A expansão da Idade Média Central

De toda forma, a recuperação demográfica carolíngia, mesmo pequena, apontava para a expansão que começaria em meados do século X. Apesar da inexistência de uma documentação quantitativa, é inquestionável aquele crescimento na Idade Média Central, como se percebe por cinco claros indícios. O primeiro deles, um acentuado movimento migratório. Ao contrário da imagem tradicional, que vê o homem medieval fortemente ligado à sua região, enraizado, sabe-se hoje que mesmo na Alta Idade Média ele se deslocava ocasionalmente, conforme as necessidades impostas pela agricultura ou pela guerra. Jacques Le Goff observou que “a propriedade era quase desconhecida na Idade Média como realidade material ou psicológica”, não estabelecendo, seja para o nobre, seja para o camponês, uma ligação afetiva com a terra habitada e trabalhada, por isso “a mobilidade dos homens da Idade Média foi extrema e desconcertante” (64:I,172). De fato, podemos constatar para aquela fase a ocorrência de quatro grandes tipos de migração: 1) migrações habituais, ou seja, deslocamentos de população (por exemplo para arrotear novas áreas), migrações sazonais (como no inverno, a busca de pastos ainda verdes), migrações temporárias (vassalos indo prestar o consilium na corte do seu senhor feudal, clérigos dirigindo-se a um concilio* ou sínodo), atração dos centros urbanos (que exerceram forte sedução nos séculos XIIXIII, ao possibilitar aos camponeses uma nova condição social e econômica), mobilidade militar (como a conquista da Inglaterra pelos normandos ou as Cruzadas); 2) migrações coloniais, como as que levaram à formação de entrepostos comerciais italianos no Oriente, a fixação de franceses nas áreas reconquistadas aos muçulmanos na Espanha, de alemães nas regiões arrancadas aos eslavos na Europa Oriental, de católicos nos territórios tirados aos islamitas no Oriente Médio (Cruzadas) ou aos hereges cátaros no sul da França; 3) migrações extraordinárias, como o êxodo de mouros (empurrados para o sul da Península Ibérica com o avanço da Reconquista Cristã) e de judeus (perseguidos pelas primeiras Cruzadas e expulsos da Inglaterra em 1290 e da França em 1306). E também todo tipo de migrações forçadas, caso dos escravos vendidos por mercadores italianos nas regiões islâmicas do Oriente; 4) migrações sem instalação, como os movimentos de errantes (marginais, aventureiros, clérigos sem domicílio fixo como os célebres goliardos*) e de peregrinos (tanto em direção a centros regionais de peregrinação* quanto Compostela). Um segundo indício da expansão demográfica da Idade Média Central é o movimento de arroteamentos, que fazia recuar as florestas, os terrenos baldios, as zonas pantanosas. Iniciados no século VIII, com os primeiros sinais de recuperação demográfica, os arroteamentos foram intensificados no século X e ganharam grande impulso no século XII, quando o ritmo de crescimento populacional tornou-se mais rápido. Esse fenômeno revelava a necessidade de se criar novas áreas cultiváveis, de se formar novas unidades produtivas no setor básico da economia, a agricultura. Assim, paralelamente à expansão territorial por meio de conquista militar, a Cristandade* latina expandia-se também no seu próprio interior. De acordo com a tipologia dos arroteamentos estabelecida por Georges Duby (43:I,149-169), havia três espécies deles. O primeiro deu-se pelo alargamento dos terrenos cultivados há muito tempo, com a ocupação das terras virgens limítrofes. Tais empreendimentos não foram realizados por monges, como se acreditava até recentemente, mas por nobres desejosos de estender seus senhorios* e, principalmente, por camponeses que formavam propriedades à custa dos bosques senhoriais. O segundo tipo de arroteamento dava-se pela fundação de novas aldeias, às vezes erguidas por razões de segurança nas fronteiras de um principado ou às margens de uma rota importante. Outras vezes o objetivo era econômico: para os bispos levantar dízimos, para os senhores laicos obter rendimentos provenientes do exercício de seus direitos de ban*. O último tipo de arroteamento era o povoamento intercalado realização de iniciativas individuais, de pioneiros que agiam isoladamente, na busca mais de pastos que de terras cultiváveis. Terceiro indício: aumento do preço da terra e do trigo. Apesar da migração dos excedentes populacionais de uma região para outra e apesar ainda do alargamento da área produtiva graças aos arroteamentos, a Europa católica não conseguia reequilibrar a oferta e a demanda pelo principal meio de produção, a terra, e conseqüentemente pelos bens de a Jerusalém, Roma e consumo vitais, sobretudo o trigo. Na Inglaterra, por exemplo, entre 1160 e 1300 ele teve seu valor quase triplicado. Na tentativa de superar esse problema, maiores extensões de terra foram entregues à triticultura, reduzindo as áreas de pastagem: em razão disso, na década de 1210 o preço da ovelha era 132% e o da vaca 155% maior do que meio século antes. Em alguns locais da Normandia, no norte francês — como em vários outros da Europa ocidental cristã — a densidade demográfica era em 1313 maior que a atual. Não surpreende, portanto, que entre 1200 e 1300 o preço da terra na Normandia tenha aumentado de sete a dez vezes. Outra indicação da expansão demográfica do Ocidente cristão está no acentuado crescimento da população urbana naquele período. Enquanto por volta do ano 1000 talvez não existisse na Europa católica nenhuma cidade com uma população de 10.000 habitantes (70: 263), no século XIII havia 55 cidades com um número de habitantes superior àquele: duas na Inglaterra, seis na Península Ibérica, oito na Alemanha, 18 na França e Países Baixos, 21 na Itália (56: 247). Esta última era não apenas a região mais urbanizada do Ocidente* como também a que possuía as maiores cidades. Ainda que as cifras sejam sempre discutíveis, sem haver consenso entre os especialistas, Milão, Florença, Veneza e Gênova devem ter ultrapassado os 100.000 habitantes. No restante da Europa Ocidental, apenas Paris parece ter alcançado tal população. Contudo, é importante lembrar, a Cristandade ocidental continuava a ser essencialmente rural, já que no século XIII não mais de 20% de sua população total vivia em centros urbanos (56: 158). Se em fins da Idade Média pôde surgir na Toscana, Itália central, um provérbio segundo o qual “o campo produz animais, a cidade produz homens”, é porque se tratava da região européia mais fortemente urbanizada. Na verdade, o crescimento populacional das cidades fazia-se em grande parte graças ao capital demográfico recebido do campo. Nos locais onde o campo não podia fornecer grandes contingentes, como na Península Ibérica, a população urbana crescia por si mesma, porém de forma menos intensa. Um quinto indício de que a população européia ocidental crescia bastante entre os séculos XI e XIII é proporcionado pelas transformações sofridas pela arquitetura religiosa. A própria passagem do românico para o gótico — deixando de lado por ora todas as suas implicações estéticas, filosóficas, mentais (Apêndice 3) — reflete a necessidade de áreas internas maiores, capazes de abrigar um número crescente de fiéis. Em vários casos, a construção de grandes igrejas devia-se à busca de prestígio por parte de uma cidade ou de um importante personagem, e mesmo a um revigorar da espiritualidade*, mas devia-se sobretudo ao desejo de abrigar todo o rebanho de Cristo, cada vez maior, nas casas de Deus. Mesmo as igrejas rurais necessitaram de reformas no século XIII, com a reconstrução de suas naves, que se haviam tornado muito pequenas. Significativamente, foram sobretudo as catedrais, localizadas nas cidades, que tiveram de ser alargadas. Muitas das que foram então construídas cobriam amplas áreas — 7.700 metros quadrados no caso de Amiens, 6.166 no de Colônia, 3.000 no de Burgos — podendo abrigar milhares de pessoas. As igrejas de peregrinação, por sua vez, não só passaram, desde o século XI, a ser maiores como a apresentar uma planta que comprova o crescente afluxo de peregrinos. Surgiu assim o deambulatório, corredor curvo que saindo de uma nave lateral passa pelas capelas na cabeceira da igreja e desemboca na outra nave lateral, organizando desta forma a passagem das multidões de fiéis diante das relíquias* sagradas colocadas nas capelas. Todos esses testemunhos apontam, portanto, para um forte crescimento demográfico entre os séculos XI e XIII, mas é extremamente difícil quantificá-lo. De maneira geral, a documentação medieval fornece poucos dados populacionais que permitem um tratamento estatístico. Apenas as fontes inglesas são suficientemente ricas para tanto.

Portanto, mesmo sem se poder quantificar com maior rigor e precisão a expansão demográfica da Idade Média Central, ela é inegável. Assim, é preciso pensar nas razões desse fenômeno. De início, devemos lembrar que naquele período dois fatores que anteriormente elevavam a mortalidade tiveram seu alcance reduzido. O primeiro deles — ainda insuficientemente esclarecido — foi a ausência de epidemias, com o recuo da peste e da malária, continuando apenas a lepra a ter certa intensidade. Talvez, como já vimos, a fraca densidade populacional anterior tenha funcionado como um diluidor e amenizador dos deslocamentos de bactérias. O segundo fator a considerar é o tipo de guerra, que não envolvia grandes tropas de combatentes anônimos, como nas legiões romanas ou nos exércitos nacionais modernos: a guerra feudal era feita por pequenos bandos de guerreiros de elite, os cavaleiros. As batalhas propriamente ditas eram raras. Prevaleciam as ações individuais dos guerreiros, e não uma ação coletiva coordenada. Apesar dos laços de vassalagem* e de parentesco, uma luta entre dois grupos de nobres feudais envolvia geralmente poucas dezenas de guerreiros, raramente algumas centenas. Quando da invasão da Inglaterra, em 1066, Guilherme da Normandia contava com 4.000 cavaleiros comandados por 200 barões. Na importante batalha de Bouvines, em 1214, na qual se jogou a sorte da França capetíngia, do Império Angevino e do Santo Império, Filipe Augusto contou com apenas 900 cavaleiros e 5.000 infantes. E claro que durante essas lutas alguns senhorios eram devastados, porém o efeito destruidor da guerra geralmente fazia-se sentir apenas de forma local. O raio de ação de um grupo de cavaleiros era bastante reduzido, em virtude das dificuldades de deslocamento e de aprovisionamento. Aqueles guerreiros irrequietos e pouco disciplinados não se mantinham muito tempo em campanha. O contrato feudo-vassálico estipulava quase sempre um serviço militar de 40 dias anuais, sendo problemático mesmo para um senhor feudal poderoso reunir seus vassalos por um prazo superior. Em razão disso, sempre que possível os reis tentavam contratar guerreiros mercenários, demográfico. Acima de tudo, a guerra feudal não objetivava a morte do adversário, apenas sua captura. Como uma das obrigações vassálicas era pagar o resgate do senhor aprisionado, c como na pirâmide hierárquica feudal quase todo nobre, além de ser vassalo de outros, tinha seus próprios vassalos, capturar um inimigo na guerra era obter um rendimento proporcional à importância do prisioneiro. Por isso, os cronistas lamentavam as batalhas mais violentas, nas quais a morte de alguns cavaleiros representava a perda de polpudos resgates. Além disso, o instrumental bélico era mais defensivo que destruidor. É significativo que as bestas — dotadas de molas metálicas e portanto de poderoso arremesso, que penetrava uma armadura a até 270 metros de distância — tenham sido proibidas no II Concilio de Latrão, em 1139, por serem consideradas mortíferas. Mas a remoção de fatores obstaculizadores do crescimento populacional não explica tudo. É preciso considerar a ocorrência de fatores facilitadores daquele fenômeno. O primeiro deles era a abundância de recursos naturais. Já observamos que com o recuo demográfico dos alternativa possibilitada pelo próprio crescimento séculos II-VIII Extensas áreas anteriormente cultivadas foram abandonadas, permitindo a recuperação das florestas, que tinham sido fortemente exploradas pelos antigos. Dessa forma, no início da Idade Média Central o espaço cultivado era muito restrito, predominando a natureza virgem, da qual homens tiravam importantes complementos à alimentação. A abundância de terras cultiváveis fica atestada pelos arroteamentos empreendidos durante a Idade Média Central, possíveis graças à existência de largos espaços a serem conquistados à natureza. Diante disso, é possível pensar que o aumento da produtividade agrícola nos séculos XI-XII deveu-se, pelo menos em parte, ao fato de se cultivarem terras virgens — ou praticamente isso, por terem ficado inexploradas por longo tempo — e portanto de maior fertilidade. Outro fator que contribuiu para a expansão demográfica medieval foi a suavização do clima. Ainda que insuficientemente explicado, o fenômeno parece indiscutível e de alcance mundial, tendo ocorrido então, por exemplo, um recuo do gelo nos mares e montanhas do norte e abundância de água nas regiões saarianas, que depois o deserto reconquistaria. Na Europa ocidental o clima tornou-se mais seco e temperado do que atualmente, sobretudo entre 750 e 1215. A viticultura pôde então expandir-se em regiões anteriormente impróprias, como a Inglaterra. A paisagem de alguns locais foi alterada e humanizada, como a Groenlândia, que fazia jus a seu nome (literalmente, “terra verde”) e apenas no século XIII, em virtude de novas mudanças climáticas, passou a ter icebergs em sua direção, tornando-se inóspita. O período mais quente e seco não apenas transformou determinadas áreas em cultiváveis e habitáveis como contribuiu para dificultar a difusão da peste. De fato, na forma bubônica seu vetor é a pulga, que vive sob uma temperatura de 15 a 20 graus e sob uma umidade relativa do ar de 90% a 95%. Na forma pneumônica, a peste é transmitida pelas gotículas de saliva do homem infectado, as quais em regiões frias e úmidas ficam em suspensão na atmosfera e penetram no organismo pela respiração. Ou seja, a pluviometria condiciona o ritmo sazonal da peste, com a umidade do ar estimulando a epidemia se ela estiver presente na região.

Daí nas zonas atlânticas, devido à umidade, a peste ter-se instalado e persistido por anos sob uma forma atenuada antes de eclodir em vagas violentas. Por último, ajuda a explicar o crescimento populacional dos séculos X-XIII o surgimento ou difusão de uma série de inovações nas técnicas agrícolas. Na verdade, discute-se qual teria sido o elemento a desencadear o processo: o crescimento populacional, pressionando por maior produção, levou ao progresso técnico, ou, ao contrário, foi o progresso técnico que possibilitou a expansão demográfica? A primeira tese foi defendida, dentre outros, por David Herlihy (22: 1958, 23) e a segunda, por estudiosos como Georges Duby (43:1, 211). De qualquer forma, dentre os aperfeiçoamentos técnicos da época, três exerceram uma ação direta sobre a elevação da produtividade agrícola: a nova atrelagem dos animais, a charrua pesada e o sistema trienal. O primeiro deles teve efeitos importantes, pois na Antigüidade a força motriz do cavalo era fraca, nunca sendo usada nos trabalhos agrícolas, porque uma parelha deslocava menos de 500 quilos, enquanto a partir da Idade Média Central passou a deslocar até mais de 5 toneladas (57: 63). A nova atrelagem substituiu as correias colocadas no pescoço do animal, que pressionavam a jugular e a traquéia, por uma espécie de coleira rígida que não estrangulava. Assim, o cavalo pôde desde então ser utilizado nos serviços agrícolas, o que representou um grande ganho de energia: boi e cavalo têm a mesma força de tração, porém este último desloca-se uma vez e meia mais rápido e pode trabalhar uma ou duas horas a mais por dia (96: 62). Viabilizou-se dessa forma a utilização da charrua, que talvez tenha sido introduzida na Europa ocidental pelos germanos na Primeira Idade Média, mas que era muito pesada e requeria força motriz animal. Assim, durante os primeiros sete ou oito séculos medievais continuou-se a empregar o velho arado romano, eficiente apenas nos solos ligeiros das regiões mediterrâneas. A expansão agrícola para regiões de solos mais profundos e duros tornou a charrua indispensável, pois ela não se limita a arranhar a camada superior do solo, revolvendo a terra e trazendo para cima os nutrientes acumulados nas camadas inferiores. Além disso, ela economiza mão-de-obra ao dispensar a tarefa de cavar o solo com enxada antes de semeá-lo. De especial importância, no entanto, foi o sistema trienal, possivelmente a mais influente inovação agrícola da época. De um lado, porque a divisão da terra cultivável em três partes aumentou a extensão da área produtiva, deixando apenas um terço em pousio*, contra metade no sistema bienal dos séculos anteriores. De outro lado, porque o sistema trienal alterou os próprios hábitos alimentares: uma parte da terra era semeada com cereais de inverno (trigo e centeio) e outra com cereais de primavera (cevada e aveia), esta principalmente para cavalos, daí a estreita relação entre sistema trienal e uso daquele animal. A sementeira de primavera, além dos cereais, compreendia quase sempre leguminosas (ervilhas, lentilhas, favas), que nitrogenando o solo mantêm sua fertilidade, além de fornecer proteínas para a alimentação humana. Este é um ponto fundamental. As inovações tecnológicas não apenas produziram uma maior quantidade de alimentos como, sobretudo, uma melhor qualidade. Até aquela época a dieta era mal balanceada, porque, baseada em cereais, fornecia muitas calorias e hidrato de carbono e poucas proteínas e vitaminas. A alteração então ocorrida na dieta talvez explique a mudança na proporção entre população masculina e feminina, favorável à primeira na Alta Idade Média e à segunda posteriormente. Como mostrou o estudo de Bullough e Campbell (22: 1980, 317325), até o século X ou XI a mulher ingeria pequena quantidade de ferro, que seu organismo necessita em proporção maior do que o do homem, devido à menstruação, à gravidez e à lactação. Portanto, a anemia feminina era generalizada na Alta Idade Média, daí a maior propensão das mulheres a certas doenças. Com a introdução de leguminosas na dieta e uma presença mais assídua de carne, peixe, ovos e queijo, a mortalidade feminina diminuiu. Tal fato teve ampla repercussão, contribuindo até mesmo para a valorização social da mulher.

O ressurgimento da peste na Baixa Idade Média

O crescimento populacional acabou por se revelar excessivamente elevado para as condições européias de então. Durante o auge daquele fenômeno tinham sido ocupadas terras marginais, de menor fertilidade, que se esgotavam em poucos anos, baixando a produtividade média e desestabilizando o frágil equilíbrio produção-consumo. No mesmo momento em que essa contradição se revelava mais claramente, no século XIII, ocorria uma alteração que acentuava as dificuldades. E tal alteração, por sua vez, era ao menos em parte produto daquela própria condição. O aumento populacional tinha implicado a derrubada de grandes extensões florestais, já que a madeira era o principal combustível e material de construção: em 1300 as florestas da França cobriam 1 milhão de hectares a menos que hoje (57: 80). Dessa forma comprometia-se o equilíbrio ecológico, provocando mudanças no regime pluvial e portanto no clima, elemento fundamental para uma sociedade agrária como aquela. Isso ajuda a explicar as chuvas torrenciais que em 1315-1317 atingiram a maior parte da Europa ao norte dos Alpes, exatamente nos locais de grande devastação florestal. O clássico estudo de Henry Lucas (22:1930, 343-377) mostra que as chuvas constantes e a queda de temperatura prejudicavam as vinhas, a produção do sal que se dava por evaporação, e sobretudo a produção dos cereais, cujos grãos não cresciam nem amadureciam. Na Inglaterra, o preço de uma medida de trigo, que era de 5 shillings em 1313, pulou para 20 em princípios de 1315 e para 40 em meados do ano. Em Antuérpia, importante centro distribuidor de cereais, o trigo subiu 320% em sete meses. A fome fazia grande quantidade de vítimas. O canibalismo tornou-se comum. Diferentes epidemias agravavam a situação. Impulsionada pela fome, muita gente vagava em busca do que comer, levando consigo as epidemias e a desordem. Em Ypres, importante cidade do norte europeu, cerca de 10% da população morreu em 1316. Na verdade, este foi apenas um ensaio da crise demográfica da Baixa Idade Média, que teve seu ponto crucial no ressurgimento da peste, então conhecida por peste negra. Ela apresentava-se de duas formas. A bubônica (assim chamada por provocar um bubão, um inchaço) tinha uma letalidade (relação entre os atingidos pela doença e os que morrem dela) de 60% a 80%, com a maioria falecendo após três ou quatro semanas. A peste pneumônica, transmitida de homem a homem, tinha uma letalidade de 100%, fazendo suas vítimas depois de apenas dois ou três dias de contraída a doença. Também a peste, de certa forma, resultava da desmedida expansão do período anterior. Sempre presente no Oriente, ela atingiu a colônia genovesa de Caffa, na Criméia, expressão da expansão territorial e comercial do Ocidente*. Contra essa presença ocidental, os tártaros cercavam a colônia italiana quando a peste se manifestou em seu exército. Recorrendo àquilo que Jean-Noël Biraben chamou de “inovação na guerra bacteriológica” (BIRABEN: I, 53), eles arremessaram cadáveres infectados por cima das muralhas genovesas. Abandonando o local, os genoveses levaram a peste para Constantinopla, Messina, Gênova e Marselha. Destes portos ela difundiu-se pelo restante da Europa. Grosso modo, a peste propagou-se de sul para norte, quase sempre do litoral para o interior. Ela caminhava mais rapidamente pelas principais vias de comunicação e penetrava mais facilmente em regiões de alta densidade demográfica, produto da Idade Média Central. Democrática e igualitária, a peste atingia indiferentemente a todos. Ao contrário do que os historiadores sem conhecimento médico sempre afirmaram, a má nutrição não era condição agravante. Ricos e pobres, organismos bem e mal alimentados, eram igualmente suscetíveis à peste. A diferença residia no fato de se estar mais ou menos exposto ao contágio. Grupos como coveiros, médicos e padres eram mais atingidos por razões profissionais. As zonas rurais, de população mais esparsa, eram mais poupadas que as cidades. A única possibilidade de salvação estava em manter-se afastado dos locais tocados pela peste. Foi o que fizeram, por exemplo, os personagens do Decameron, de Giovanni Boccaccio, que abandonaram Florença e foram viver isolados nos arredores da cidade enquanto a peste maltratava seus concidadãos que não tinham recursos para fugir.

Até 1670, a Europa foi atingida todo ano. No período crítico, o da chamada peste negra, em 1348-1350, as perdas humanas variaram, conforme a região, de dois terços a um oitavo da população. No conjunto, estima-se, a Europa ocidental perdeu cerca de 30% de seus habitantes naquela ocasião, e só retomaria o nível populacional pré-peste 200 anos depois, em meados do século XVI. A peste negra foi a maior catástrofe populacional da história ocidental: num intervalo de tempo bem menor, matou, em termos absolutos, mais do que a Primeira Grande Guerra Mundial e, em termos relativos, considerando-se a população européia nos dois momentos, mais do que a Segunda Guerra Mundial.

Bibliografia básica: 41, 42, 43, 50, 52, 56, 63, 64, 70, 84. Bibliografia complementar: R ALEXANDRE, Le climat en Europe au Moyen Âge. Contribution à l'histoire des variations climatiques de 1000 à 1425, d'après les sources narratives de l'Europe occidentale, Paris, EHESS, 1987; J. -N. BIRABEN, Lês hommes et Ia peste en France et dans les pays européens en mèditerranéens, Paris-La Haye, Mouton, 1975-1976, 2 vols; O. GUYOTJEANNIN (dir.), Population et démographie au Moyen Âge, Pau, CTHS, 1995; J. HEERS, “Les limites des méthodes statistiques pour les recherches de démographie médiévale”, Annales de Démographie Historique, 1968, pp. 43-72; C. McEVEDY e R. JONES, Atlas of World Population History, Harmondsworth, Penguin, 1980.